a paz de augsburgo
A paz de Augsburgo : uma análise da Confissão de Fé de Augsburgo
Ana Paula Arendt*
Em resposta aos amigos luteranos – ou do movimento protestante – apresento alguns comentários ao documento “Confissão de Fé de Augsburgo”. Espero trazer boas novidades, após a análise e reflexão, ao final. Firmada por sete príncipes (João, Duque da Saxônia, eleitor; Jorge, Margrave de Brandenburg; Ernesto, Duque de Lüneburg; Filipe, Landgrave de Hesse; João Frederico, Duque da Saxônia; Francisco, Duque de Lüneburg; Wolfgang, Príncipe de Anhalt; pelo Burgomestre e Conselho de Nurembergue; e pelo Burgomestre e Conselho de Reutlingen), trata-se de uma declaração com 28 artigos, elaborada pelos luteranos nessas diferentes cidades, cuja redação final contou com a revisão de Lutero, por cartas. A proposta foi apresentada como base de fé ao Imperador Carlos V, para dar fim à desunião religiosa entre os saxões, que em seguida incorporou também outras cidades para se tornar uma declaração luterana.
Penso que exista um particular interesse neste trabalho por uma razão. Se supomos como possível a hipótese de que todos serão salvos, como sugeriu Urs van Balthasar, e que o inferno estará vazio, alguma harmonização entre a fé católica e protestante terá de se produzir para tanto, no decurso desse horizonte pneumatológico, a fim de que todos sejamos salvos. Ao menos é o que decorreria fôssemos consoantes e coerentes com o que manifesta a fé católica, em suas jaculatórias, no pedido a Deus para que livre “todas as almas do inferno, e especialmente aquelas que mais precisam da Sua misericórdia”. E se supomos que a capacidade divina de salvar todos os homens é suficiente para propor-lhes eficazmente a salvação, e que uma vez proposta por Deus, a salvação é irresistível, naturalmente se seguiria que todos os protestantes, ainda que antes tivessem sido condenados ou refutados pela Igreja, de algum modo figurarão no paraíso, ao lado daqueles que anteriormente os refutaram, excomungaram e condenaram.
Abordei esse problema da salvação de todos anteriormente, pesquisando as sagradas escrituras e obras dos Santos reconhecidos pela Igreja Católica em um texto anterior. Apesar de ter encontrado evidências abundantes nesses textos de referência para resguardar essa possibilidade, como hipótese, a grande questão que se coloca, imediatamente, é como isso poderia se transcorrer. O que opinar da Confissão da Fé de Augsburgo, no contexto da cisão que Lutero provocou na Igreja Católica?
Eu não ousaria elaborar nenhuma tese sobre os efeitos das 95 afirmações de Lutero que visavam reformar a Igreja Católica, discutir seu mérito, nem conceber qual terá sido o impacto da propositura que ele fez na defesa da própria fé perante as autoridades eclesiásticas durante o seu processo de excomunhão. Ele defendeu a interpretação pessoal da Bíblia conforme a sua própria consciência, e a fé como algo suficiente para ser salvo, fator independente das obras.
A Bula Exsurge Domine, do Sumo Pontífice Leão X sobre os erros de Martinho Lutero foi publicada dez anos antes da Confissão de Fé de Augsburgo, em 5 de junho de 1520, em resposta às 95 teses de Martinho Lutero e aos seus escritos, condensados pelo novo documento. Daquelas 95, o papa reconhecia como válidas 54 teses, mas pedia que Lutero se retratasse por 41 delas, assim como por outros erros especificados, oferecendo um prazo de 70 dias a partir da sua publicação. No dia do prazo final, 10 de dezembro de 1520, relata-se que Lutero queimou a sua cópia da bula juntamente com os volumes do Código de Direito Canônico. Para quem julga Lutero tenha reagido como alguém intencionalmente rebelde, preciso notar o teor da bula do Papa Leão X, que não trata apenas de analisar e corrigir erros teológicos, mas inicia seu teor com insultos a Lutero e seus simpatizantes: refere-se a detratores de sua autoridade absoluta como javali da floresta, fera selvagem, falsos mestres, seitas ruinosas, línguas de fogo cheias de mortal veneno, mal incansável, zelo amargo, discórdia em seus corações, vaidosos, mentirosos etc.
“O javali da floresta procura destruí-la e toda fera selvagem vem devastá-la [a Igreja Romana]. Erguei-vos, Pedro, e realizai o serviço pastoral divinamente confiado a Vós, como já dito. Prestai atenção à causa da santa Igreja Romana, mãe de todas as igrejas e mestra da fé, que Vós por ordem de Deus santificastes com vosso sangue. Bem que avisastes que viriam falsos mestres contra a Igreja Romana, para introduzir seitas ruinosas, atraindo sobre eles rápidas condenações. Suas línguas são de fogo, mal incansável, cheias de mortal veneno. Eles possuem zelo amargo, discórdia em seus corações, vangloriam-se e mentem contra a verdade”. (…) Agora, um novo Porfírio se levanta que, como o outro do passado, cheio de erros assediou os santos apóstolos, e agora ataca os santos pontífices, nossos predecessores. (…) Ele os reprova por violação a vosso ensinamento, em vez de implorá-los, e não tem pudor de atacá-los, de lamentá-los, e quando se desespera de sua causa, de rebaixar-se aos insultos. Ele é como os hereges" cuja última defesa", como disse Jerônimo,"é pôr-se a vomitar veneno de serpente com sua língua, quando veem que suas causas estão para ser condenadas, e explodem em insultos quando se veem vencidos". Embora tenhais dito que deveria haver heresias para testar a fé, ainda assim eles devem ser destruídos no próprio berço por vossa intercessão e ajuda, e, assim, não crescerão nem se tornarão fortes como vossos lobos. (…) Que toda a santa Igreja de Deus, eu clamo, se levante, e com os santos apóstolos interceda perante o Deus Todo Poderoso para estripar os erros de sua ovelha, para banir todas as heresias dos campos da fé, e para que seja de seu agrado manter a paz e a unidade de sua santa Igreja. (…) No ponto de vista deles, o temor de Deus é coisa do passado. (Exurge Domine, Bulla contra Errores Martini Lutheri et sequacium, Leão X, 1520)
Não tenho como julgar a atitude de Lutero que ensejou a bula papal referida, porque não estudei a fundo sua biografia nem os detalhes de todos os seus escritos; nem a biografia de Papa Leão X, que publica sua bula com o brasão de armas dos Médici; nem estudei o Código de Direito Canônico que estava em vigor em 1520. Seria necessário um estudo mais aprofundado do que folhear o material. Há de convir, entretanto, que o Papa Leão X não se dirige a Lutero em uma bula como um pai se dirige a seu filho, ou como um pastor se dirige ao seu cão. A bula, de efeito público, parece correção muito distante da forma como a Igreja Católica Apostólica Romana disciplina hoje seus sacerdotes: toma Lutero não como um sacerdote que recebeu imposição das mãos, mas como uma ameaça.
Portanto, parece necessário recuperar informações relevantes: se houve um procedimento inicial de correção conforme manda o Evangelho, de chamado privativo, depois com duas testemunhas, depois junto à Igreja, e só então, apenas, tratar o transgressor como um publicano que merecesse insultos públicos. Estas informações de contexto seriam necessárias para apurar se a bula papal contra os erros de Lutero continha ou não um teor político, o que nos levaria a fazer uma análise distinta da apuração do conteúdo teológico. É verdade, ainda, que o Papa Leão X teve o cuidado, ainda, de invocar Deus, todos os Santos para livrar heresisas e de chamar também o seu destinatário de “ovelha”.
Para mim, contudo, os mais polêmicos textos de Lutero não me pareceram as 95 teses, e sim “A mentira de São João Crisóstomo”, obra em que ridiculariza a hagiografia sobre a vida de um Santo amigo de Papa São Gregório; e a obra “Sobre os judeus e as suas mentiras”, texto que teria engendrado e fundamentado, durante séculos, o antissemitismo na Alemanha, raízes que ficaram guardadas e teriam alimentado, posteriormente, novas formas de ódio antissemita sob a figuração do nazismo, para perseguir a população judaica na Europa, durante a II Grande Guerra.
Não me privo de criticá-lo por falta de convicção, ou porque Lutero possa ter sido impreciso nas acusações que lançou; nem porque tenha feito uso político para lançar uma nova doutrina religiosa baseada na negação de outra, uso que seria também externo ao interesse do debate teológico. Prefiro evitar a avaliação sobre esses textos por causa dos efeitos de tomar para si a posse exclusiva do que é ou não verdade. A verdade sem dúvida existe: mas sendo o mundo um lugar tão complexo, e os nossos pontos de vista tão parciais e influenciados pelas nossas circunstâncias e justificativas, somos forçados a reconhecer que o nosso conhecimento é limitado pelo desenvolvimento intelectual e tecnológico do nosso próprio tempo. Talvez isso devesse ensejar uma certa cautela, qualquer afirmação que tivesse pretensão de se fazer permanente, especialmente tendo em conta os muitos crimes cometidos pela Inquisição e por religiosos em seus cargos clericais naquele século XVI, assassinatos de inocentes que apenas muito recentemente foram declarados erros, na homilia do Santo Papa João Paulo II, de 12 de março de 2000. Isso para não mencionar, é claro, Papisa Joana, ou papa e religiosos para os quais Dante - citado por Santos Papas - não poupou esforços para descrever, ao menos em literatura, no inferno. Não sabemos ao certo qual era a prática do clero junto ao povo, tendo conhecimento apenas por meio de registros feitos pela própria Igreja, por Estados e pelo novo movimento protestante.
Mas este texto a que me refiro, a Confissão da Fé de Augsburgo, pareceu uma obra bastante interessante nas suas formulações, porque já não se trata de uma mera crítica à Igreja Católica, nem afirma querer dividir opiniões – apresenta-se precisamente como o esforço contrário: encontrar um mínimo consenso sobre o qual se deveria se basear uma fé cristã fiel ao Evangelho e à concepção dos primeiros Apóstolos. Teria sido esse documento um movimento de revisão das propostas originais do luteranismo, no sentido almejado pelo Papa Leão X, dez anos antes?
Nesse sentido, pareceu-me particularmente relevante analisar o seu conteúdo e tentar compreender quais os fundamentos que Lutero lançou para justificar uma proposta de reconciliação sob o Imperador Carlos V, mediante uma certa reformulação da fé cristã. Comento a tradução disponibilizada em https://www.monergismo.com/textos/credos/confissao_augsburgo.htm.
Depois da publicação desse texto de Lutero, entendo que diversos teólogos católicos buscaram rechaçar o seu teor, o que posteriormente ensejou a publicação da Apologia à Confissão de Augsburgo, por Philipp Melanchthon. Pretendo apresentar aos amigos leitores meus comentários a esse primeiro texto escrito por Lutero, e às críticas católicas que se seguiram e à apologia de Melanchthon. Ao final, pondero os acontecimentos posteriores à publicação da Confissão de Fé de Augsburgo, e analiso o texto de Melâncton.
Alerto que não pretendo apresentar um juízo antes de analisar o que ele propõe, especialmente porque os sermões de Lutero sobre a Santa Ceia e sobre o Sacramento do Sangue e do Corpo de Cristo me pareceram um material muito sensível e amoroso, que contrasta com a figura que nos foi transmitida do fundador do movimento protestante. Como é possível, fosse Lutero apenas um rebelde partilhando do mesmo espírito divisivo dos anjos rebeldes, que ele tivesse alcançado tão altas conclusões sobre o Santíssimo Sacramento, sobre a fé e o amor?
E surge também a pergunta sobre por que Lutero não poderia estender indistintamente essas conclusões amorosas e conclamação pela unidade a todos, sem distinguir certos cargos, etnia ou condições de vida. Para mim o luteranismo ainda é um grande mistério. Hoje a Igreja Católica toma certas religiões protestantes como outras religiões, e as relações se dão sob um diálogo ecumênico, em busca de pontos de convergência e de partilha. Contudo, sem adentrar nos documentos em que se baseia a fé protestante, dificilmente haveria verdadeiramente um diálogo.
Certos sacramentos celebrados em igrejas protestantes são reconhecidos pela Igreja Católica, desimportando se esses sacramentos foram celebrados por padres em situação regular, que seguem estritamente os concílios católicos, ou pastores casados, que criticam e recusam fazer parte da mesma Igreja. Mas ora, se um consenso de fé proposto por Lutero se conformasse à doutrina de fé da Igreja Católica nos tempos de hoje, não seria desnecessário adentrar diferenças institucionais para separar o movimento católico do movimento protestante? E se, hoje, o documento sobre a Paz de Augburgo pudesse ser ponderado como algo aceitável? E por outro lado, Lutero protestaria que seus ensinamentos estivessem em conformidade com a Igreja Católica? Essas foram as dúvidas que me trouxeram a perscrutar este texto, formulado em 25 de junho de 1530.
Análise preliminar da Confissão de Fé de Augsburgo à luz da doutrina da Igreja Católica hoje
O texto de Lutero começa com uma saudação ao Imperador “César Augusto” explicando os motivos do interesse em atender a seu apelo de superar dissensões e obter uma unidade cristã para favorecer o combate aos turcos, quem Lutero considera “adversário atrocíssimo, hereditário e antigo do nome e da religião cristãos”. Lutero sugere que o enfrentamento contra os turcos deve resistir “com preparação bélica durável e permanente”. Já de início, surge a dúvida: por que Lutero consegue submeter-se ao Imperador Carlos V, em nome da necessidade de uma unidade cristã para enfrentar os turcos resistindo de um modo bélico, um poder temporal, mas não ao Papa, resistindo com a proclamação do Evangelho?
Há muitas respostas possíveis, e certamente a primeira delas é o fato de que ele havia sido excomungado, e já não poderia interagir com as autoridades eclesiásticas da Igreja Católica sem antes elaborar uma retratação. Disso se dirigir ao Imperador, mas não ao Papa, o qual por sinal tinha alegadamente uma boa relação com o Imperador Carlos V. É de conhecimento geral pela oração de São José, tradição mantida viva na prática popular da Igreja, enviada pelo Papa ao Imperador Carlos V, para que fosse protegido em suas batalhas.
Mas quando Lutero se submete à autoridade do Imperador, entretanto, ele parece fazer essa concessão com o objetivo de prevalecer sua proposta de doutrina em um domínio espiritual, voltando-se para a união entre cristãos. Seriam cristãos, para Lutero, apenas aqueles que recusassem a autoridade do Papa? Ou ele se refere a todos os cristãos? Pelo contexto histórico sabemos que o Imperador o convoca para unificar os cristãos protestantes, mas Lutero afirma em sua proposta que lhe escreve e comparece...
“a fim de que neste assunto da religião as opiniões e sentenças das partes, presentes umas às outras, possam ser ouvidas, entendidas e ponderadas entre nós, com mútua caridade, brandura e mansidão, para que, corrigido o que tem sido tratado incorretamente nos escritos de um e outro lado, possam essas coisas ser compostas e reduzidas a uma só verdade simples e concórdia cristã, de forma tal, que, quanto ao mais seja praticada e mantida por nós uma só religião pura e verdadeira; e para que assim como estamos e militamos sob um mesmo Cristo, possamos da mesma forma viver em uma só igreja cristã, em unidade e concórdia”. (Confissão de Fé de Augsburgo, preâmbulo).
Lutero não exclui, ainda, prestando obediência ao poder temporal, que a Paz de Augburgo possa ser alterada e revisada, sem contenda odiosa, para dirimir dissensões.
“Agora, se os demais eleitores, príncipes e ordens do Império igualmente apresentarem, de conformidade com a precitada indicação da Majestade Imperial, em escritos latinos e germânicos, suas opiniões na questão religiosa, estamos dispostos, com a devida obediência a Vossa Majestade Imperial, como nosso Senhor clementíssimo, a conferir, amigavelmente, com os precitados príncipes, nossos amigos, e com as ordens, sobre vias idôneas e toleráveis, a fim de que cheguemos a um acordo, até onde tal se possa fazer honestamente, e, discutida a questão entre nós, dessa maneira, com base nos propostos escritos de ambas as partes, pacificamente, sem contenda odiosa, possa a dissensão, com a ajuda de Deus, ser dirimida e haja retorno a uma só verdadeira e concorde religião. Assim como todos estamos e militamos sob o mesmo Cristo, devemos outrossim confessar um só Cristo, segundo o teor do edito de Vossa Majestade Imperial, e todas as coisas devem ser conduzidas em acordo com a verdade de Deus, e pedimos a Deus com ardentíssimas preces que auxilie esta causa e dê a paz.” (Confissão de Fé de Augsburgo, preâmbulo).
Lutero menciona que o Imperador mantinha representantes e comissários com vistas a tratar sobre a convocação de um concílio na esperança de unificar a fé cristã, para obter uma reconciliação com o romano pontífice.
“(...) e que Vossa Majestade Imperial não duvidou de que seria possível induzir o Pontífice Romano a celebrar um concílio geral, porquanto as questões que então eram tratadas entre Vossa Majestade Imperial e o Romano Pontífice avizinhavam-se de uma concórdia e reconciliação cristã. Por isso Vossa Majestade Imperial bondosamente significava que se empenharia no sentido de que o Romano Pontífice consentisse, o quanto antes possível, em congregar tal concílio, através da emissão de cartas.” (Confissão de Fé de Augsburgo, preâmbulo).
Disso podemos deduzir, portanto, que Lutero tinha a expectativa de que fosse possível, pela intercessão do Imperador, alcançar um concílio de maneira a obter a concórdia e unidade com a Igreja Católica, e se mostrava aberto a dirimir dissensões para obter a reconciliação. E quanto ao conteúdo do que propunha como mínimo denominador comum?
No que diz respeito à estrutura essencial da fé, sobre Deus, Lutero afirma a Santíssima Trindade disposta conforme o Concílio de Niceia, uma só essência divina e na qual existem todavia três pessoas, Pai, Filho e Espírito Santo, eterna, indivisa, infinita, Criador (etc.) e rejeita todas as heresias contrárias (Confissão de Fé de Augsburgo, art. 1).
Sobre o Filho de Deus, toma-o como nascido da pura Virgem Maria e que guarda duas naturezas, divina e humana, em uma única pessoa. Em seguida, também afirma o Symbolum Apostolorum sobre Cristo (Confissão de Fé de Augsburgo, art. 3).
No que diz respeito à Igreja, considera que o ofício da pregação deve estar fundamentado sobre a ação do Espírito Santo e pelo Evangelho, condenando os que ensinam alcançar o Espírito Santo sem a palavra viva do Evangelho (Confissão de Fé de Augsburgo, art. 5). Prega o batismo das crianças e condena os que pregam o contrário (Confissão de Fé de Augsburgo, art. 9). Ensina a transubstanciação do pão e vinho em corpo e sangue de Cristo na Santa Ceia e rejeita doutrinas contrárias (Confissão de Fé de Augsburgo, art. 10). Propõe a confissão deve ser guardada privativa (Confissão de Fé de Augsburgo, art. 11) e que deve ser concedido “o perdão dos pecados a qualquer tempo em que cheguem ao arrependimento, não lhes devendo a igreja negar a absolvição” (Confissão de Fé de Augsburgo, art. 12).
Em questões de natureza do homem, afirma que o ser humano tem livre arbítrio: “Quanto ao livre arbítrio se ensina que o homem tem até certo ponto livre arbítrio para viver exteriormente de maneira honesta e escolher entre aquelas coisas que a razão compreende.” E que, entretanto, “sem a graça, o auxílio e a operação do Espírito Santo o homem é incapaz de ser agradável a Deus, temê-lo de coração, ou crer, ou expulsar do coração as más concupiscências inatas (art. 18).
No que diz respeito a obras e obediência, ele oferece a seguinte interpretação:
“Ensina-se ainda que essa fé deve produzir bons frutos e boas obras, e que, por amor de Deus, se deve praticar toda sorte de boas obras por ele ordenadas, não se devendo, porém, confiar nessas obras, como se por elas se merecesse graça diante de Deus. Pois é pela fé em Cristo que recebemos perdão dos pecados e justiça, como diz o próprio Cristo: "Depois de haverdes feito tudo isso, deveis dizer: Somos servos inúteis." Assim também ensinam os Pais. Pois Ambrósio diz: "Assim está estabelecido por Deus que aquele que crê em Cristo é salvo, e tem a remissão dos pecados não por obras, mas pela fé somente, sem mérito". (Confissão de Fé de Augsburgo, Nova obediência, art. 6)
Sobre a possibilidade de aceitar diferentes denominações cristãs, Lutero recusa essa ideia:
“Ensina-se também que sempre haverá e permanecerá uma única santa igreja cristã, que é a congregação de todos os crentes, entre os quais o evangelho é pregado puramente e os santos sacramentos são administrados de acordo com o evangelho. Porque para a verdadeira unidade da igreja cristã é suficiente que o evangelho seja pregado unanimemente de acordo com a reta compreensão dele e os sacramentos sejam administrados em conformidade com a palavra de Deus. E para a verdadeira unidade da igreja cristã não é necessário que em toda a parte se observem cerimônias uniformes instituídas pelos homens. É como diz Paulo em Efésios 4: "Há somente um corpo e um Espírito, como também fostes chamados numa só esperança da vossa vocação; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo."” (Confissão de Fé de Augsburgo, art. 7, Da igreja)
Neste ponto, a Confissão de Fé de Augsburgo talvez comece a se diferenciar ligeiramente do que se tinha como tradição na Igreja para reconhecer a validade de uma interpretação. A base para a “reta compreensão” do Evangelho e a definição do que seria unânime, como reta compreensão, não é aprofundada neste trecho de sua proposta, nem Lutero prevê algum tipo de procedimento para definir a compreensão que deve ser tomada como consensual pelos pregadores. É verdade que hoje também temos, na Igreja Católica, uma Constituição dogmática afirmando que todos os homens têm livre acesso à revelação:
“Aprouve a Deus. na sua bondade e sabedoria, revelar-se a Si mesmo e dar a conhecer o mistério da sua vontade (cfr. Ef. 1,9), segundo o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo encarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da natureza divina (cfr. Ef. 2,18; 2 Ped. 1,4). Em virtude desta revelação, Deus invisível (cfr. Col. 1,15; 1 Tim. 1,17), na riqueza do seu amor fala aos homens como amigos (cfr. Ex. 33, 11; Jo. 15,1415) e convive com eles (cfr. Bar. 3,38), para os convidar e admitir à comunhão com Ele. Esta «economia» da revelação realiza-se por meio de acções e palavras intimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras, realizadas por Deus na história da salvação, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras; e as palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido. Porém, a verdade profunda tanto a respeito de Deus como a respeito da salvação dos homens, manifesta-se-nos, por esta revelação, em Cristo, que é, simultâneamente, o mediador e a plenitude de toda a revelação.” (Dei Verbum Cap. I, § 2, grifos nossos)
Do mesmo modo,
“O sagrado Concílio professa que Deus, princípio e fim de todas as coisas, se pode conhecer com certeza pela luz natural da razão a partir das criaturas» (cfr. Rom. 1,20); mas ensina também que deve atribuir-se à Sua revelação «poderem todos os homens conhecer com facilidade, firme certeza e sem mistura de erro aquilo que nas coisas divinas não é inacessível à razão humana, mesmo na presente condição do género humano»” (Dei Verbum, Cap. I, § 6)
De um modo similar ao que parecia entender Lutero, a fonte que valida e confirma a doutrina e a validade das palavras, portanto, na constituição dogmática católica ora em vigor, é a revelação atribuída ao próprio Deus.
Entretanto, a mesma constituição determina que
“Deus dispôs amorosamente que permanecesse integro e fosse transmitido a todas as gerações tudo quanto tinha revelado para salvação de todos os povos. Por isso, Cristo Senhor, em quem toda a revelação do Deus altíssimo se consuma (cfr. 2 Cor. 1,20; 3,16-4,6), mandou aos Apóstolos que pregassem a todos, como fonte de toda a verdade salutar e de toda a disciplina de costumes, o Evangelho prometido antes pelos profetas e por Ele cumprido e promulgado pessoalmente (1), comunicando-lhes assim os dons divinos. (...) Porém, para que o Evangelho fosse perenemente conservado integro e vivo na Igreja, os Apóstolos deixaram os Bispos como seus sucessores, «entregando lhes o seu próprio ofício de magistério» (...) E assim, a pregação apostólica, que se exprime de modo especial nos livros inspirados, devia conservar-se, por uma sucessão contínua, até à consumação dos tempos. (...) Por isso, os Apóstolos, transmitindo o que eles mesmos receberam, advertem os fiéis a que observem as tradições que tinham aprendido quer por palavras quer por escrito (cfr. 2 Tess. 2,15), e a que lutem pela fé recebida duma vez para sempre (cfr. Jud. 3) (Dei Verbum, Cap. II, §7-8, grifos nossos)”.
A pregação tomada como autêntica, portanto, para a Igreja Católica, é aquela validada pela Sagrada Tradição apostólica, originada, por assim dizer, naqueles ramos que não se cindiram da linhagem da fé apostólica. É preciso ter recebido, por um processo de transmissão desde essa ascendência, o reconhecimento dos sucessores que os Apóstolos deixaram responsáveis pelo magistério.
Seria impossível, então, conciliar hoje o que Lutero dispunha com a doutrina da Igreja sobre essa matéria? Entretanto, é possível encontrar uma intersecção entre essas duas propostas.
Para o concílio que instituiu a Dei Verbum, é certo que não seria possível admitir como suficientemente válida uma pregação que não tivesse observado a Sagrada Tradição da Igreja, ou que entrasse em contradição com o Magistério da Igreja. Assim dispõe:
“Porém, o encargo de interpretar autênticamente a palavra de Deus escrita ou contida na Tradição, foi confiado só ao magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo. Este magistério não está acima da palavra de Deus, mas sim ao seu serviço, ensinando apenas o que foi transmitido, enquanto, por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo, a ouve piamente, a guarda religiosamente e a expõe fielmente, haurindo deste depósito único da fé tudo quanto propõe à fé como divinamente revelado.” (Dei Verbum, Cap. II, § 10).
Mas o próprio Magistério da Igreja, como vimos, confirma que é Deus, por meio da revelação por Ele mesmo realizada, o autor da verdade e da pregação que O revela. A constituição dogmática não estabelece que os sucessores dos Apóstolos sejam os monopolistas da Revelação, ou da interpretação das Sagradas Escrituras:
“Com efeito, tudo quanto diz respeito à interpretação da Escritura, está sujeito ao juízo último da Igreja, que tem o divino mandato e o ministério de guardar e interpretar a palavra de Deus.” (Dei Verbum, Cap. II, §12, grifos nossos).
É a Igreja como um todo, portanto, aquela que tem o “divino mandato e o ministério de guardar e interpretar a palavra de Deus”. O magistério da Igreja está amparado, portanto, na prática e a interpretação da Igreja, dos fieis como um todo, como fonte autêntica do ministério da pregação (sensus fidei).
É possível conceber, ainda, do lado de Lutero, também uma intersecção lógica entre a Confissão de Fé de Augsburgo e a Dei Verbum. Lutero considera possível que um Sacramento seja válido, ainda que não tenha sido ministrado por sacerdotes piedosos:
“Além disso, ainda que a igreja cristã, propriamente falando, outra coisa não é senão a congregação de todos os crentes e santos, todavia, já que nesta vida continuam entre os piedosos muitos falsos cristãos e hipócritas, também, pecadores manifestos, os sacramentos nada obstante são eficazes, embora os sacerdotes que os administram não sejam piedosos”. (Confissão de Fé de Augsburgo, art. 8, Que é a Igreja)
A pregação, do mesmo modo que um Sacramento, pode também permanecer válida mesmo havendo falhas ou vícios naqueles que a administram, por analogia. Além disso, não se encontra na Confissão de Fé de Augsburgo uma condenação aos sucessores dos Apóstolos reconhecidos pelas autoridades eclesiásticas da Igreja. Não encontramos tampouco na Confissão de Fé de Augsburgo um artigo que anulasse ou excluísse como inválida a pregação ou os Sacramentos ministrados por sacerdotes sucessores dos Apóstolos, observando o Magistério da Igreja, a Sagrada Tradição, ou o sensus fidei que alimenta essas duas pernas.
Observaria a “reta compreensão” ou a “conformidade” exigidas por Lutero (Confissão de Fé de Augsburgo, art. 7, Da igreja) apenas então quem concordasse com Lutero, ou com os artigos da sua proposta na Confissão de Fé de Augsburgo? Mas a Confissão de Fé de Augsburgo não descarta ex ante nenhuma pregação ou Sacramento por causa da virtude ou vício daqueles que os ministrem. Menos ainda, por pertencimento a uma denominação religiosa, pois refere-se apenas ao Evangelho como fonte certificadora. Por mais existam falsos cristãos e hipócritas, ou pecadores manifestos, o que a própria Igreja Católica reconhece também existir como um padecimento da Igreja, havendo toda a Sagrada Tradição e o Direito Canônico se desenvolvido para corrigir os vícios, a Confissão de Fé de Augsburgo não exclui a validade dos Sacramentos e, ousamos deduzir, tampouco a validade de uma pregação, quando corresponda ao Evangelho, embora não determine quais seriam os quesitos e procedimentos para avaliação dessa conformidade.
Neste aspecto, tanto a Dei Verbum quanto a Confissão de Fé de Augsburgo coincidem. Pois há sucessores dos Apóstolos que se corromperam, e não é apenas a pregação do sacerdote, como vimos, que certificam suas palavras estariam em conformidade com o Evangelho, mas a Revelação do próprio Deus (Dei Verbum Cap. I, § 2) e a Igreja, credora e avalista do Magistério (Dei Verbum, Cap. II, §12).
Prosseguindo na leitura do texto, entramos em uma linha mais complicada para analisar, que discerne entre “fé” e “satisfazer”, para acolher o magistério do perdão dos pecados mediante a fé, e rejeitar o magistério do perdão dos pecados conforme um “satisfazer”.
“Rejeitam-se, outrossim, os que não ensinam alcançar-se perdão dos pecados mediante a fé, e sim por nosso satisfazer.” (Confissão de Fé de Augsburgo, art. 12, Do arrependimento)
Deduz-se que afirmar os pecados não seriam redimidos por um mero “satisfazer” significaria declarar necessária a adesão da consciência e o consentimento ao que não pode ser plenamente apreendido pela consciência. Teremos de arriscar uma interpretação ao que Lutero quis fazer entender: talvez por “satisfazer” entendesse dar-se por satisfeito com o ritual do confessionário, em que se apresentavam os pecados, sem que necessariamente estivesse o fiel determinado a não mais cometê-los, ou sem que tivesse reformulado sua consciência, ou aderido a um novo proceder, dando assim mostra, pela fé, da mudança de atitude; e/ou talvez se referisse às indulgências por meio das quais a Igreja protocolava o perdão, sem adentrar o problema da consciência e da mudança de conduta que caracterizam uma conversão de fé.
Não fica claro se Lutero considera indispensável que o sacramento da Penitência seja administrado por um sacerdote, ou por qualquer autoridade eclesiástica. No entanto, parece claro que Lutero não delimita ou descarta como inútil o sacramento da Penitência administrado por um sacerdote, desde que se atente para esse quesito, da necessidade da fé, para que a remissão dos pecados tenha efeito reconhecido. Neste ponto parece gozar de bom senso a proposta dele. Não basta sair satisfeito do confessionário, presumindo ter a consciência limpa, se não houve uma mudança sincera no coração, para haver uma mudança no proceder.
A doutrina da Igreja católica também coincide nisto: a administração do sacramento da Penitência volta-se para a conversão.
“Aqueles que se aproximam do sacramento da Penitência, obtêm da misericórdia de Deus o perdão da ofensa a Ele feita e ao mesmo tempo reconciliam-se com a Igreja, que tinham ferido com o seu pecado, a qual, pela caridade, exemplo e oração, trabalha pela sua conversão.” (Lumen Gentium, 11).
O sentido da fé e dos carismas no povo cristão hoje também convergem para o que Lutero sugeriu:
“O Povo santo de Deus participa também da função profética de Cristo, difundindo o seu testemunho vivo, sobretudo pela vida de fé e de caridade oferecendo a Deus o sacrifício de louvor, fruto dos lábios que confessam o Seu nome (cfr. Hebr. 13,15). A totalidade dos fiéis que receberam a unção do Santo (cfr. Jo. 2, 20 e 27), não pode enganar-se na fé; e esta sua propriedade peculiar manifesta-se por meio do sentir sobrenatural da fé do povo todo, quando este, «desde os Bispos até ao último dos leigos fiéis», manifesta consenso universal em matéria de fé e costumes. Com este sentido da fé, que se desperta e sustenta pela acção do Espírito de verdade, o Povo de Deus, sob a direcção do sagrado magistério que fielmente acata, já não recebe simples palavra de homens mas a verdadeira palavra de Deus (cfr. 1 Tess. 2,13), adere indefectivelmente à fé uma vez confiada aos santos (cfr. Jud. 3), penetra-a mais profundamente com juízo acertado e aplica-a mais totalmente na vida.” (Lumen Gentium, 12)
Disso se nota que é também pela fé que a Igreja Católica alcança o consenso universal, «desde os Bispos até ao último dos leigos fiéis», o que foi ensinado por Santo Agostinho (S. Agostinho, De Praed. Sanct. 14, 27: PL 44, 980). O que leva a indagar: por que a Igreja Católica recusaria uma asserção de Lutero que, essencialmente, repete o que disse Santo Agostinho, um cânone da Igreja, e a sua própria constituição dogmática em vigor, Lumen Gentium? Ainda nessa mesma constituição dogmátia, encontramos que o ministério episcopal de santificar também depende da fé, para salvar os creem: “Pelo ministério da palavra, comunicam a força de Deus, para salvação dos que crêem (cfr. Rom. 1,16) e, por meio dos sacramentos, cuja distribuição regular e frutuosa ordenam com a sua autoridade, santificam os fiéis” (Lumen Gentium, 26). Lutero em nenhum momento recusa sejam ministrados os sacramentos, cumprida a adesão pela fé. Porque a mesma afirmação sobre a importância da fé seria válida em um escrito de um Santo, ou em um documento da Igreja, mas inválida se dita por Lutero?
A proposta de Lutero prossegue também atenta à necessidade de regulamentar a ordem eclesiástica:
“Da ordem eclesiástica se ensina que sem chamado regular, ninguém deve publicamente ensinar ou pregar ou administrar os sacramentos na igreja. (Confissão de Fé de Augsburgo, Art. 14).”
Nisto se esbarraria, então, em uma primeira incompatibilidade entre a Confissão de Fé de Augsburgo e a doutrina da Igreja Católica? Afinal, se a Igreja Católica apenas reconhece como legítimos os sucessores dos Apóstolos, os bispos e aqueles a quem eles subdelegam o múnus, presbíteros e diáconos constituídos pelos bispos, o “chamado regular” seria genérico demais, então, para ser tomado como um consenso? “Chamado” por vocação divina, ou necessidade da Igreja? “Regular”, por implicar num constante empenho da parte de quem ensina, prega ou administra os sacramentos? Lutero não especifica, mas todo o clero, exceto aqueles que não se apresentaram por vocação, mas por outros subterfúgios, atendem a esses dois aspectos.
A Confissão de Fé de Augsburgo prossegue, e neste ponto Lutero se torna mais radical:
“Das ordenações eclesiásticas estabelecidas por homens se ensina observar aquelas que possam ser observadas sem pecado e contribuam para a paz e a boa ordem na igreja, como, por exemplo, certos dias santos, festas e coisas semelhantes. Esclarecemos, porém, que não se devem onerar as consciências com essa coisas, como se fossem necessárias para a salvação. Ensina-se, ademais, que todas as ordenanças e tradições feitas pelo homem com o propósito de por elas reconciliar-se a Deus e merecer graça são contrárias ao evangelho e à doutrina da fé em Cristo. Razão por que votos monásticos e outras tradições concernentes a distinção de alimentos, dias, etc. pelas quais se pensa merecer graça e satisfazer por pecados, são inúteis e contrários ao evangelho”. (Confissão de Fé de Augsburgo, Art. 15, Das ordenações eclesiásticas).
Conviria recordar, entretanto, a origem da radicalidade dessa proposta. Pois foi o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo quem recusou o enfoque nas práticas religiosas estabelecidas com base em tradições humanas, restrições à alimentação, jejuns, e outras superstições. São Pedro, posteriormente, expandiu essa radicalidade, ao dispensar a circuncisão e as restrições a certas carnes de animais que eram proibidas pelo judaísmo. Recordemos a crítica dos Evangelhos ao domínio religioso, quando Cristo reclama sobre o dízimo de temperos (“Condutores cegos! Coais um mosquito e engolis um camelo.” São Mateus 23, 24-6; “Mas em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos dos homens.” São Mateus 15, 9). Portanto, parece que não faria o menor sentido retornar à obrigação de preceitos de ordem similar aos que Nosso Senhor Jesus Cristo tomava como superficiais. Recusássemos essa proposta de Lutero, efetivamente incorreríamos no risco de corromper e ignorar o sentido do Evangelho, o qual gira em torno do perdão e remissão dos pecados, da partilha do pão e da vida, da prática da misericórdia, para alcançar a misericórdia divina, do serviço ao próximo, como obrigações essenciais.
Neste ponto, parece conveniente também considerar o contexto no qual Lutero escreve: a Igreja Católica encontrava-se no auge de seu período inquisitorial, quando uma atmosfera de medo e de obsessão em punir enviava pessoas inocentes à fogueira, para proclamar, contraditoriamente, valores do Evangelho. Lembre-se que Marguerite Porette, a primeira mulher queimada viva, na França, foi condenada pela Inquisição por escrever um livro sobre amor e humildade, aprovado por quatro teólogos pareceristas, e cujo teor correspondia em diversos trechos a passagens bíblicas e de Santos, em formato literário comum de seu tempo, valorizado na obra literária de Marguerite de Valois-Angoulême: um pároco local não gostou de seu livro e o fez denunciado. Em tempos de perseguição por motivos religiosos, o peso das regras e a gravidade da mínima transgressão dessas regras, ainda que costumeiras, era certamente muito mais oneroso do que possamos conceber hoje. Esse fardo, e não as diferenças de interpretação bíblica, talvez tivesse ensejado que as comunidades cristãs em questão, seguras da essência do Evangelho, e os sete príncipes que as governavam, tivessem acolhido a proposta de Lutero como uma maneira de defender-se contra perseguições violentas, amparadas em abusos e excessos de determinações.
Sobre a ordem política e do governo civil, Lutero reafirma o que era disposto pela Igreja Católica à época, provavelmente tendo em conta a fundamentação teológica da autoridade política e jurídica elaborada por São Tomás de Aquino.
“Da ordem política e do governo civil se ensina que toda autoridade no mundo e todos os governos e leis ordenados são ordenações boas, criadas e instituídas por Deus, e que cristãos podem, sem pecado, ocupar o cargo de autoridade, de príncipe e de juiz, proferir sentença e julgar segundo as leis imperiais e outras leis em vigor, punir malfeitores com a espada, fazer guerras justas, combater, comprar e vender, fazer juramentos requeridos, possuir propriedade, casar, etc.” Aqui são condenados os anabatistas, os quais ensinam que nenhuma das coisas supramencionadas é cristã.” (Confissão de Fé de Augsburgo, Art. 16, Da ordem política e do governo civil).
Sabemos, na teoria e na prática, que a Igreja Católica raramente interfere nas decisões de autoridades políticas e de governo, quando aplicadas a indivíduos; exceção feita para as leis e regras pelas autoridades aprovadas, quando eventualmente a Igreja Católica se pronuncia para denunciar inconsistências de novas legislações com as questões de fé. Mas se isso ocorre, é porque em geral a Igreja Católica também presume inicialmente que todo poder, seja ele temporal ou espiritual, deve servir a um propósito constituído por Deus. O Papa João XXIII afirmou, para todo efeito, o mesmo que Lutero ao colher da tradição de seu tempo, com outras palavras, baseando-se no argumento do Santo que Lutero despreza, São João Crisóstomo:
“A sociedade humana não estará bem constituída nem será fecunda a não ser que lhe presida uma autoridade legítima que salvaguarde as instituições e dedique o necessário trabalho e esforço ao bem comum. Esta autoridade vem de Deus, como ensina são Paulo: "não há poder algum a não ser proveniente de Deus" (Rm 13, 1-6). A esta sentença do Apóstolo faz eco a explanação de são João Crisóstomo: "Que dizes? Todo governante é constituído por Deus? Não, não afirmo isso. Não trato agora de cada governante em particular mas do governo como tal. Afirmo ser disposição da sabedoria divina que haja autoridade, que alguns governem outros obedeçam e que não se deixe tudo ao acaso ou à temeridade humana". Com efeito, Deus criou os homens sociais por natureza e, já que sociedade alguma pode "subsistir sem um chefe que, com o mesmo impulso eficaz, encaminhe todos para o fim comum, conclui-se que a comunidade humana tem necessidade de uma autoridade que a governe. Esta, assim como a sociedade, se origina da natureza, e por isso mesmo, vem de Deus".
A autoridade não é força incontrolável, é sim faculdade de mandar segundo a sã razão. A sua capacidade de obrigar deriva, portanto, da ordem moral, a qual tem a Deus como princípio e fim. Razão pela qual adverte o nosso predecessor Pio XII, de feliz memória: "A ordem absoluta dos seres e o próprio fim do homem (ser livre, sujeito de deveres e de direitos invioláveis, origem e fim da sociedade humana) comportam também o Estado como comunidade necessária e investida de autoridade, sem a qual não poderia existir nem medrar... Segundo a reta razão e, principalmente segundo a fé cristã, essa ordem de coisas só pode ter seu princípio num Deus pessoal, criador de todos. Por isso, a dignidade da autoridade política tem sua origem na participação da autoridade do próprio Deus” (Pacem in Terris, 46 e 47)
Na Igreja Católica, manteve-se entretanto que é dever dos bispos, no exercício de sua função de governar a Igreja, servir de exemplo para os que governam:
“Finalmente, devem [os bispos] ajudar com o próprio exemplo aqueles que governam, purificando os próprios costumes de todo o mal e tornando-os bons, quanto lhes for possível com o auxílio do Senhor, para que alcancem, com o povo que lhes é confiado, a vida eterna.” (Lumen Gentium, 26).
A despeito da aliteração desse dever nos documentos da Igreja, não se encontra nisto uma contradição com o que está disposto na Confissão de Fé de Augsburgo. De modo que tampouco neste ponto específico, parece Lutero divergir do que considera aceitável a Igreja Católica nos tempos de hoje.
Mas Lutero prossegue ensejando uma crítica à ordenação do sacerdócio que demandam votos, abrigadas pela Igreja Católica, e vejamos se a doutrina da Igreja Católica poderia acolher essa proposta:
“Condenam-se, outrossim, aqueles que ensinam ser perfeição cristã abandonar fisicamente casa e lar, mulher e filhos, e renunciar as coisas citadas, quando o fato é que apenas verdadeiro temor de Deus e verdadeira fé constituem a perfeição autêntica. Pois o evangelho não ensina uma forma de vida e justiça exteriores, temporais, senão uma interior e eterna vida e justiça do coração, e não abole o governo civil, a ordem política e o casamento, querendo, ao contrário, que se guarde tudo isso como genuína ordem divina e que cada qual, de acordo com sua vocação, mostre, em tais ordenações, amor cristão e obras verdadeiramente boas. Por isso os cristãos têm o dever de estar sujeitos à autoridade e de obedecer-lhe aos mandamentos e leis em tudo o que não envolva pecado. Porque se não é possível obedecer à ordem da autoridade sem pecar, mais importa obedecer a Deus do que aos homens. (Atos 5.45) (Confissão de Fé de Augsburgo, art. 16, Da ordem política e do governo civil).
Este parece ser um ponto mais problemático, mas não porque a doutrina da Igreja disponha contrariamente a essa proposta: o próprio Evangelho dispõe Cristo demandou maiores sacrifícios a algumas pessoas.
“E a outra pessoa ele disse: “Siga-me”. O homem, porém, respondeu: “Senhor, deixe-me primeiro sepultar meu pai”. Jesus respondeu: “Deixe que os mortos sepultem seus próprios mortos. Você, porém, deve ir e anunciar o reino de Deus”. Outro, ainda, disse: “Senhor, eu o seguirei, mas deixe que antes me despeça de minha família”. Mas Jesus lhe disse: “Quem põe a mão no arado e olha para trás não está apto para o reino de Deus”. (São Lucas, 9, 59-62)
“Disse-lhe o jovem: “A tudo isso tenho obedecido. O que me falta ainda?” Jesus respondeu: “Se você quer ser perfeito, vá, venda os seus bens e dê o dinheiro aos pobres, e você terá um tesouro nos céus. Depois, venha e siga-me”. Ouvindo isso, o jovem afastou-se triste, porque tinha muitas riquezas. Então Jesus disse aos discípulos: “Digo-lhes a verdade: Dificilmente um rico entrará no Reino dos céus. E lhes digo ainda: É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus”. Ao ouvirem isso, os discípulos ficaram perplexos e perguntaram: “Neste caso, quem pode ser salvo?” Jesus olhou para eles e respondeu: “Para o homem é impossível, mas para Deus todas as coisas são possíveis”. (São Mateus 19, 20-6 = São Lucas 18, 18-30)
Contudo, Nosso Senhor Jesus Cristo, assumido pela própria Confissão de Fé de Augsburgo como pessoa integrante da Santíssima Trindade, não poderia ser ignorado ao transmitir, para todo efeito, uma ordem de Deus, ao instruir a algumas pessoas que abandonassem família e bens para segui-lo. Não se trata, portanto, de obedecer aos homens, pois a verdade constante no Evangelho é que os homens, e até mesmo os Apóstolos, ao expressar surpresa com a exigência de Cristo, não querem largar família nem bens. Obedecer a Deus, antes de obedecer aos homens, seria, então, concordar que algumas pessoas - nem todas - são chamadas por Cristo a proceder dessa maneira radical. Particularmente, Cristo propunha abandonar família e bens àqueles que se aproximavam dizendo haviam cumprido todos os preceitos - poderíamos supor, já que não eram Apóstolos, que o faziam como se tivessem obtido certa proficiência, para merecer elogio, ou ser dispensados de maiores responsabilidades. Tanto é assim que, feito o chamado, recusam o convite de Cristo. No entanto, isso não invalida o fato de que muitos recebem de Cristo maiores encargos e são chamados a realizar maiores sacrifícios, e é evidente que os Apóstolos e discípulos efetivamente abandonaram família e bens para pregar o Evangelho, sem o que a Palavra de Cristo não teria avançado.
Agora se recorda que, em preâmbulo, os signatários da Confissão de Fé não descartaram a possibilidade de que a declaração fosse ajustada. Parece evidente que, para melhor se harmonizar ao Evangelho, conviria constatar que, àqueles que se dão por satisfeitos com a própria conduta e desejam avançar no serviço que prestam seguindo Cristo, Cristo os convidou a abandonar família e bens para pregar o Evangelho. Assim, nenhuma Confissão de Fé que almejasse obedecer a Deus, antes de obedecer aos homens, deveria suprimir o que Deus dispõe por meio do Evangelho.
Deve-se compreender, ainda, novamente o contexto no qual a Confissão foi escrita. O Evangelho não dispunha que toda e qualquer pessoa devesse abandonar família e bens para pregar a Palavra de Cristo, apenas alguns que solicitaram mais instruções a Cristo receberam esse chamado. Contudo sabemos que, naquele momento histórico no qual a religião católica havia se estabelecido como um domínio temporal com precedência sobre as decisões de governos, o clero arrogava essa exigência para justificar o exercício de um poder de comando.
Neste sentido, a Confissão de Fé de Augsburgo parece contraditar com o que dispõe o Evangelho, mas suas razões para chegar a este ponto não parecem equivocadas de todo: não se deveria tomar o atendimento a um chamado de maior sacrifício, deixar família e bens, como um sinal de maior prestígio para exercer ou legitimar um poder temporal de governo. O sacerdócio implica abrir mão da vida pessoal para ser servo dos demais, e não para chefiar os demais. A nosso ver, esse artigo na verdade parece ser elaborado para combater os excessos do clericalismo naquele tempo. Poderia ser reformulado, de maneira a não ferir a verdade constante no Evangelho.
É preciso compreender, ainda, o Evangelho em seu contexto. Pois nem todos os Apóstolos e discípulos precisaram abandonar a família, quando a família deles foi incorporada no serviço apostólico; e do mesmo modo, os bens pessoais foram incorporados nos bens da Igreja, os quais seguem sendo úteis não apenas a si, mas à comunidade cristã. Esse “abandono” da família e dos bens, portanto, parece dizer respeito ao abandono da ideia de tomar família e bens como propriedades para si mesmo, e ter a atitude de incorporar tudo o que se tem na missão de evangelizar e salvar as almas. Neste ponto, parece correta a atualização proposta pela Confissão de Fé de Augsburgo: não é necessário abandonar família nem bens quando tudo isto já se encontra incorporado e culminando para a finalidade da missão cristã na Igreja.
Sobre o horizonte escatológico, a Confissão de Fé de Augsburgo parece estar harmonizada com o atual Catecismo da Igreja Católica, prevendo a existência de um paraíso e de um inferno, bem como o Juízo Final. A declaração dos luteranos não proíbe que os ímpios, se arrependendo de seus pecados, sejam contados entre os crentes e eleitos, se bem não desenvolve, entretanto, como se dará a remissão dos pecados. A rejeição de cenários que antecipam impossíveis de se confirmar, ou que não estejam em diálogo com o cânone bíblico, parecem estar em consonância com a cautela que Joseph Ratzinger sugeria ao se referir a um futuro sobre o qual não temos domínio.
“Também se ensina que nosso Senhor Jesus Cristo voltará no último dia para julgar, e que ressuscitará todos os mortos, dará aos crentes e eleitos vida e alegria eternas, porém condenará os homens ímpios e os demônios ao inferno e castigo eterno. Rejeitam, por isso, os anabatistas, os quais ensinam que os diabos e os homens condenados não sofrerão dor e tormento eternos. Aqui se rejeitam, outrossim, algumas doutrinas judaicas que também ao presente se manifestam e segundo as quais antes da ressurreição dos mortos um grupo constituído integralmente de santos e piedosos terá um reino terrestre e aniquilará todos os ímpios.” (Confissão de Fé de Augsburgo, Art. 17, Da volta de Cristo para o Juízo).
A linguagem adotada pela declaração luterana para abordar o pecado se discerne bastante daquela utilizada pela Igreja Católica em seu Catecismo, mas em suma corresponde também à ideia de que foi por obra do diabo † que se transcorreu o pecado original, e os demais pecados que se seguiram:
“Com respeito à causa do pecado ensina-se entre nós que, embora o Deus onipotente haja criado a natureza toda e a conserve, todavia é a vontade pervertida que opera o pecado em todos os maus e desprezadores de Deus. Pois esta é a vontade do diabo e de todos os ímpios, a qual, tão logo Deus retraiu a mão, desviou-se de Deus para o mal, conforme diz Cristo Jo 8: "Quando o diabo profere a mentira, fala do que lhe é próprio." (Confissão de Fé de Augsburgo, Art. 19, Da causa do pecado).
Finalmente, no artigo 20 da referida declaração, encontramos o fulcro da divergência entre luteranos e católicos: o problema da fé e das boas obras. Lutero afirma que antes dele apenas se sublinhavam necessárias as obras, e nenhuma doutrina a respeito da fé:
“Os nossos são acusados falsamente de proibirem boas obras. Pois os seus escritos sobre os Dez Mandamentos bem como outros escritos provam que deram bom e útil ensino e admoestação a respeito de estados e obras cristãos verdadeiros, de que pouco se ensinou antes de nosso tempo. Insistia-se, ao contrário, em todos os sermões principalmente em obras pueris e desnecessárias, tais como rosários, culto de santos, vida monástica, romarias, jejuns e dias santos prescritos, confrarias, etc.” (Confissão de Fé de Augsburgo, art. 20, Da fé e das boas obras).
Nisto, como vimos, não podemos confirmar Lutero, haja vista que Santo Agostinho havia elaborado proposições semelhantes, que debitam à graça e à misericórdia divina a virtude, e não aos méritos do indivíduo. Constatamos também similar redação em Santo Agostinho e nos documentos da Igreja, no que diz respeito à importância da fé para que se instalem as virtudes e obras. É difícil considerar que Lutero pudesse desconhecer Santo Agostinho, pois a Confissão de Fé de Augsburgo o cita, recordando Hypognosticon no artigo 18 de seu texto. Portanto apenas podemos entender que a declaração versa sobre um estado de coisas em desconformidade com o que propugnava Santo Agostinho e os documentos oficiais da Igreja. De um modo geral, os luteranos parecem ter excluído da Igreja Católica o que julgavam como indesejável e inconforme, e retirado da Igreja tudo aquilo que era desejável e conforme, tomando para si mesmos apenas esta última parte.
Uma reflexão mais profunda seria necessária: haveria mesmo apenas inconformidades na prática religiosa católica ao tempo de Lutero? E seríamos verdadeiramente cristãos, com fé autêntica, buscando apenas o que nos pareça palatável e conforme, deixando de lado o que na Igreja precisa de remédio, para nos apartar dessa realidade, como se fôssemos contaminados, fazendo parte dela? Afinal, é preciso recordar que as obras dos grandes Santos, e não apenas as de Santo Agostinho, se beneficiaram desse substrato aparentemente tóxico, tendo obtido das lamas diversas, desprezíveis ao paladar, a força e a motivação necessária para crescer a videira, para construir formulações e práticas melhores e mais compatíveis com a fé cristã. Recusar a parte da realidade que está inconforme com as nossas opiniões ou pensamentos, por mais sejam opiniões e pensamentos bons e preferíveis, acaba nos tornando apartados dessa realidade que precisa ser reformulada.
É preciso lembrar, entretanto, que esse não é um problema apenas dos luteranos, nem dos protestantes, em geral. Muitos fieis dentro da Igreja Católica preferem ignorar a injustiça, os sofrimentos e dores por detrás da violência e inconformidade, e dedicar-se a afazeres que tornam a fé alienada do nosso próprio meio. Neste ponto, a crítica dos luteranos aos “preceitos humanos”, às práticas de devoção, talvez fizesse sentido em um tempo no qual as práticas de devoção não correspondiam a um vigor autêntico, e não se pudesse vislumbrar outra maneira, senão a da iniciativa própria, para não corromper a própria fé. De algum modo, nessa declaração eles demonstram o sentimento de que a fé daquele tempo não correspondia ao Evangelho, e pareciam justificados nesse instinto de retorno às origens da Igreja. Tendo em conta a grande estupidez de matar e torturar pessoas, rotulando diferentes crenças de heresias, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, eles teriam sido lúcidos – não fosse o detalhe de que o manual e as regras religiosas que enviaram tantas milhares de pessoas e mulheres à tortura e à fogueira abundaram, em muito maior medida, nas comunidades protestantes.
O que parece mais fundamental, entretanto, é observar que o luteranismo ressalva não proíbir em momento algum boas obras, desde que sejam “verdadeiras”, e este parece o ponto mais importante para dirimir qualquer incompatibilidade entre a fé dos luteranos e a fé católica.
Haveria então de se debater o que confere veracidade a uma obra: ao ver deste trecho, a correta observância dos Mandamentos, e não as práticas religiosas instaladas, adjetivadas como “pueris e desnecessárias”. Essas práticas até hoje caracterizam em boa medida a rotina dos fieis na Igreja Católica: “rosários, culto de santos, vida monástica, romarias, jejuns e dias santos prescritos, confrarias etc.” Ora, não parece muito claro por que razão meditar repetidamente sobre orações que constam no texto bíblico, ou meditar sobre as virtudes daqueles que Deus aprouve fazer vencer o pecado, ou buscar o silêncio e isolar-se de agressores, ou peregrinar para dar testemunho em outras comunidades, ou seguir o calendário litúrgico, pudesse prejudicar a fé de alguém. São abundantes os testemunhos de que esses caminhos que muitos percorrem, pelo contrário, fortalecem a fé, sobretudo durante as adversidades. É curioso como se tendo asseverado contundentemente a importância da fé, em seguida se concluísse por retirar e desapreciar aquilo que a fortalece. Ponderando a grande diversidade de experiências e de personalidades dentro da Igreja, por que a devoção e reflexão sobre a vida e obra dos demais Santos seriam inconvenientes. A própria declaração de Augsburgo busca amparo nos trabalhos de São Paulo e Santo Agostinho. As obras deles teriam sido levadas adiante, se a Igreja não tivesse guardado a memória deles com devoção? A consequência dessa proposta não inviabilizaria a existência do próprio texto? A declaração luterana prossegue:
“Também o nosso oponente já não exalta essas obras desnecessárias tanto quanto antigamente. Além disso, também aprenderam a falar agora da fé, sobre a qual nada pregaram em tempos anteriores. Agora, contudo, ensinam que não nos tornamos justos diante de Deus unicamente por obras, mas acrescentam a fé em Cristo, e dizem que a fé e as obras nos tornam justos diante de Deus. Essa doutrina pode trazer um pouco mais consolo do que quando apenas se ensina confiar em obras.” (Confissão de Fé de Augsburgo, art. 20, Da fé e das boas obras).
Parece difícil encontrar evidência para endossar essa asserção, pois as essas obras que eles afirmam desnecessárias ainda são muito bem assimiladas pela Igreja Católica - se, por “oponente”, Lutero e os sete príncipes se referem aos críticos do luteranismo dentro da Igreja Católica. Não houve uma mudança substantiva, como sugere o artigo 20, em função de uma nova proposta do luteranismo. A oração do rosário, culto de santos, vida monástica, romarias, jejuns e dias santos prescritos, confrarias etc. na época continuavam e ainda continuam fazendo parte da vida cotidiana de todo católico e estão associados ao fortalecimento da fé, não em oposição à fé.
Neste ponto parece também sintomático de um espírito divisivo não se alegrar, contudo, com o que se afirma. Pois se o oponente aderiu ao que se propugnava como mais correto, em função do protesto, a declaração deveria felicitar quem critica; no entanto, ainda assim se manifesta oposição. E como poderia seguir manifestando oposição, se a precedência da fé tivesse sido assimilada do modo propugnado pelo luteranismo? Parece merecer uma análise mais detalhada o seguinte trecho:
“Agora, contudo, ensinam que não nos tornamos justos diante de Deus unicamente por obras, mas acrescentam a fé em Cristo, e dizem que a fé e as obras nos tornam justos diante de Deus. Essa doutrina pode trazer um pouco mais consolo do que quando apenas se ensina confiar em obras.” (Confissão de Fé de Augsburgo, art. 20, Da fé e das boas obras).
Já que, por tradição da Igreja, durante a celebração da Eucaristia, a assembleia repete as palavras “eu creio, mas aumentai a minha fé”. Também se tem como consenso ubíquo a passagem sobre a fé ser o primeiro quesito necessário: “Com efeito, de tal modo Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna.” (São João 3, 16, grifo nosso). “Aquele que crê no Filho tem a vida eterna; quem não crê no Filho não verá a vida, mas sobre ele pesa a ira de Deus”. (São João 4, 36, grifo nosso). Não parece, portanto, condizente com a rotina das celebrações e da vida religiosa da Igreja afirmar que a fé tivesse sido incluída como um acréscimo às obras apenas após o protestantismo. Os próprios autores da Confissão de Fé de Augsburgo recordam nasceu e se desenvolveu no seio da própria Igreja Católica essa perspectiva:
“E que aqui não se introduziu interpretação nova é coisa que se pode provar com Agostinho, que trata essa questão diligentemente e também ensina assim, a saber, que alcançamos a graça e nos tornamos justos diante de Deus por intermédio da fé em Cristo e não por obras, conforme mostra todo o seu livro De spiritu et litera.” (Confissão de Fé de Augsburgo, art. 20, Da fé e das boas obras).
Afinal, Santo Agostinho era católico, bem como toda a tradição que decorreu de seu pensamento fundamentando os documentos e formulações da Igreja Católica, nas mesmas bases propostas. Então por que fundar um movimento religioso à parte da Igreja, dando-se uma diversa denominação, se dentro dela já se admite essa perspectiva?
Também não parece muito claro por que Lutero sugere que essa proposta se fundamente unicamente em São Paulo: “Essa doutrina respeito à fé é tratada aberta e claramente por Paulo em muitas passagens, de modo especial em Efésios 2: "Pela graça fostes salvos, mediante a fé; e isso não vem de vós, porém é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie, etc.” (Confissão de Fé de Augsburgo, art. 20, Da fé e das boas obras). O fato é que o cristianismo não se esgota em São Paulo. Outros Apóstolos complementam a pregação de São Paulo, como sabemos, notoriamente São Tiago, de que a fé, para ser viva, precisa também ter boas obras:
“Meus irmãos, que interessa se alguém disser que tem fé em Deus e não fizer prova disso através de obras? Esse tipo de fé não salva ninguém. Se um irmão ou irmã sofrer por falta de vestuário, ou por passar fome, e lhe disserem: “Procura viver pacificamente e vai-te aquecendo e comendo como puderes”, e não lhe derem aquilo de que precisa para viver, uma tal resposta fará algum bem? Assim também a fé, se não se traduzir em obras, é morta em si mesma. (Carta de São Tiago 2, 14-17).
Afinal, não é por negligência ou incorreta interpretação das Sagradas Escrituras que se chega à preocupação de haver boas obras, como elemento que dá vida à fé, mas pelas próprias Sagradas Escrituras, e do Evangelho, que se conclui assim e se faz esse conhecimento transmitido. O próprio Apóstolo São Paulo escreve aos Efésios: “Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas.” (Carta de São Paulo aos Efésios 2, 10).
O próprio Cristo explica também sobre as diferentes posturas de fé, de crer ou não nele, em função da qualidade das próprias obras:
“Ora, este é o julgamento: a luz veio ao mundo, mas os homens amaram mais as trevas do que a luz, pois as suas obras eram más. Porquanto todo aquele que faz o mal odeia a luz e não vem para a luz, para que as suas obras não sejam reprovadas. Mas aquele que pratica a verdade vem para a luz. Torna-se assim claro que as suas obras são feitas em Deus.” (São João 4, 19-21).
Seria este trecho da Confissão de Fé de Augsburgo, então, uma falsa dicotomia a serviço da divisão, ignorando parte importante do cânone bíblico em que se respalda a importância das boas obras, para dificultar a reconciliação, e justificar um enfoque apenas sobre a fé, sem que importassem as obras? Como vimos, no Evangelho, não apenas as vidas de São Tiago e São Pedro estão balizadas pelas obras em conexão com a fé, a conduta como atos de amor expressado, mas também os ensinamentos de Cristo.
São diversas as parábolas que ensinam ser necessário dignificar-se por meio de atos e obras dignos, para a correta expiação dos pecados. Todos os milagres proporcionados por Cristo, em que despertou a fé das pessoas curadas, foram boas obras às quais ele exortou os Apóstolos e discípulos dessem prosseguimento: “Meu Pai continua agindo até agora, e eu ajo também”. (São João 5, 17) E Cristo ainda recorda a prerrogativa de que, estando unido a ele, se produzirão bons frutos, boas obras: “Eu Sou a videira, vós os ramos. Aquele que permanece em mim, e Eu nele, esse dará muito fruto; pois sem mim não podeis realizar obra alguma. (São João 15, 5). Poderia se argumentar, então, que seria a união com Cristo causa precedente, condição para produzir boa obra, e que as boas obras não interferem na qualidade divina assimilada pela fé. Mas Cristo então assinala que ramos que não produzem fruto serão descartados. Assim, a finalidade é importante, produzir bons frutos, o que enseja crer em Cristo, aderir à fé.
Apenas a fé de Pedro em crer que Jesus era o messias esperado não foi suficiente: seus atos importaram, e num primeiro momento não corresponderam à fé e ao amor expressado. Houve a necessidade de reiterar a fé e o amor por meio de atos correspondentes, cuidar do rebanho: se me amas, então “apascenta as minhas ovelhas”. Cuidar do rebanho de Cristo é uma obra. Recorde-se, ainda, o elogio de Cristo ao trabalho dos setenta discípulos de expulsar demônios (“eu vi Satanás cair como um raio”): novamente nesta passagem, Cristo delega tarefas, obras. A fé sem dúvida era o princípio, mas serve ao propósito das obras. E poderíamos recordar, ainda, a importância central, na última ceia, do lava-pés, quando Cristo designa o serviço de uns aos outros como Ele os serviu. Não se poderia jamais considerar dispensável ou secundário o serviço, já que é uma instrução direta.
Mesmo assim, parece mais importante do que analisar a coerência da proposta com o Evangelho novamente resgatar o contexto da época que poderia ter ensejado essa abordagem de Lutero e de seus seguidores, antes de descartar a Confissão de Fé de Augsburgo como uma má obra. Pois sabemos que as boas obras estavam sendo utilizadas para divulgação de méritos, em contradição com o Evangelho, assim como sabemos que hoje diversos fieis e sacerdotes cumprem ritos para obter aprovação humana, sem conversão do coração.
“Tenham cuidado! Não pratiquem boas obras em público somente para serem vistos pelos outros. Se vocês fizerem isso, não receberão nenhuma recompensa do Pai que está no céu. Quando você der alguma coisa a um pobre, não espalhe para todo mundo o que fez. Os hipócritas é que fazem isso nas sinagogas e nas ruas, a fim de receberem elogios das pessoas. Digo a verdade a vocês: Eles já receberam a recompensa deles. Você, entretanto, quando der alguma coisa aos pobres, não deixe nem que o seu melhor amigo fique sabendo o que você fez. Assim a sua esmola vai ficar em segredo; e o seu Pai que vê tudo o que é feito em segredo lhe dará a recompensa. (São Mateus 6, 1-4)
Lutero poderia ter aprofundado o que lhe incomodava na exaltação das obras como garantia de salvação, posto que certamente era a publicidade que se dava a essas obras consideradas por ele “pueris e desnecessárias” a origem do problema da simulação. Simulava-se uma fé por meio de obras que não necessariamente correspondiam a uma adesão aos valores do Evangelho. Essa simulação externa das boas obras para atender à visão dos outros, preceitos humanos, é condenada por Nosso Senhor Jesus Cristo, O qual nos adverte como um perigo. Quando Lutero sugere que a origem da boa obra retorne ao domínio da fé, ele parece estar motivado a pregar o Evangelho. Poderia ter recordado Cristo afirma orações e obras devem ser guardadas numa intimidade da qual apenas Deus tem conhecimento - no domínio em que se desenvolve a fé. Portanto, Lutero parece querer denunciar o extravio desse caminho, pois uma vez que se começa a dar muita publicidade e valorização a obras, cresce a vaidade, e assim a fé não se desenvolve. Embora o texto da Confissão de Fé de Augsburgo não invoca este aspecto ou passagem para se justificar, podemos compreender, pelo contexto, que talvez os motivos de Lutero e de seus seguidores fossem legítimos, pelas muitas superstições incorporadas às devoções, preferíveis por muitos fieis e parte do clero, por ser menos exigentes que os ensinamentos de Cristo.
Prosseguindo em sua defesa da fé como primeiro quesito para conversão, e como elemento suficiente para produzir boas obras, Lutero e os seus criticam, ainda, a consciência que enfoca certos modos de vida e procedimentos religiosos:
“Em sermões de outrora não se promoveu esse consolo, porém se impeliram as pobres consciências para as próprias obras, e se empreenderam diversas espécies de obras. A alguns a consciência impeliu para os mosteiros, na esperança de que lá poderiam granjear graça mediante vida monástica. Alguns excogitaram outras obras com o propósito de merecer graça e satisfazer por pecados. A experiência de muitos deles foi não haverem alcançado a paz mediante essas coisas. Razão por que foi necessário pregar essa doutrina da fé em Cristo e dela tratar diligentemente, a fim de que se soubesse que é somente pela fé, sem mérito, que se apreende a graça de Deus.” (Confissão de Fé de Augsburgo, art. 20, Da fé e das boas obras).
Este trecho parece sumamente importante para compreender a fé luterana, posto que Lutero “resgatou” uma freira de seu claustro e se casou com ela. Esta perspectiva sobre a inocuidade da vida religiosa monástica parece justificar o distanciamento dele e dos seus seguidores da Igreja Católica. Contudo, por que a adesão a vida monástica não poderia ser resultado justamente da fé abraçada pelas pessoas que fazem esses votos? Ao adentrar o problema, Lutero não parece incorreto ao afirmar que a experiência de vida monástica não garantiu a paz a muitos que aderiram a certas fórmulas religiosas; mas caberia analisar melhor se a razão disso seria pelo foco nas obras e negligência da fé, ou por diversos motivos outros.
Efetivamente, naquele século e em muitos séculos posteriores, sabemos que os claustros serviram para abrigar pessoas que não se enquadravam nas rigorosas condutas exigidas para pertencer a uma classe ou a um grupo. Mulheres que perdiam a virgindade eram encerradas mandatoriamente na vida monástica porque não tinham outra opção de vida. Na prática, o violador ficava livre de qualquer obrigação e, depositando-se exclusivamente sobre a mulher a culpa, atentava-se com isso contra o livre arbítrio da mulher e contra a remissão dos pecados. Diversos homens casados eram incontinentes, e nem por isso eram enviados pelas famílias aos claustros. Tinha-se certamente um retrato de sociedades que se arrogavam cristãs, contudo sendo muito violentas com as mulheres, guardando os seus aspectos primitivos de povos gentios, com práticas que seriam incompatíveis com a conduta do próprio Jesus Cristo, que se cercava e se fazia acompanhar por mulheres livres e independentes, durante os seus trabalhos e a pregação. Neste sentido, a vida monástica como uma solução social para pessoas indesejáveis nas famílias configurava uma injustiça a ser de fato combatida, incompatível com o Evangelho, que talvez tivesse justificado esse desencantamento dos luteranos com a vida religiosa.
Mas tantas razões para a falta de paz são possíveis quanto o número de pessoas que é possível aferir, pois cada pessoa deveria ser discernida em suas singularidades, diversos dons e vocações. Dentro dos monastérios, não se deveria descartar, ainda, que dificuldades de convívio fraterno pudessem ter impedido alcançassem alguns a paz; pois ainda que buscassem se isolar do mundo, os monges e freiras não podiam se isolar uns dos outros. São diversos os relatos em que a falta de paz e sossego dos religiosos ocorria por abuso de poder dos superiores, ou dos colegas - e não pela regra de vida que adotavam. Bocaccio já havia denunciado há dois séculos os detalhes terríveis que mosteiros abrigavam, sob as aparências de castidade.
Contudo, conviria recordar que alguns não apenas encontraram a paz, como frutificaram e foram santificados, a despeito das dificuldades e abusos dentro do claustro. Santa Rosa de Lima e Santa Bernadete Soubirous, São Bento e Santa Escolástica, Santa Clara e tantos outros poderiam ser citados. Do mesmo modo que não se deveria atribuir a um modo de vida monástico o êxito necessário para alcançar a paz, não se deveria descartá-lo, já que nãoforam poucos os que obtiveram benefícios.
Adicionalmente, o argumento de que é a fé a explicação suficiente para ser salvo, deveria tornar as regras que se seguem na vida religiosa inofensivas, ou ao menos neutras, em tese. Tanto assim que na Confissão de fé se afirma:
“Dá-se, outrossim, instrução para mostrar que aqui não se fala da fé possuída também pelos demônios e os ímpios, os quais também crêem os relatos que contam haver Cristo padecido e que ressuscitou de entre os mortos; fala-se, ao contrário, da fé verdadeira, que crê alcançarmos por Cristo a graça e a remissão dos pecados.” (Confissão de Fé de Augsburgo, art. 20, Da fé e das boas obras).
Pois se a fé à qual se refere é aquela “verdadeira”, para essa finalidade, o que se deduziria é que seriam, portanto, indiferentes os detalhes sobre como a pessoa alcança a disciplina e fortalece a própria fé; não haveria sentido tivessem de ser rechaçados ex ante os votos monásticos e outros modos de vida religiosos, já que se argumenta não é a rotina de atividades que garante a fé. Para ser coerente com o argumento principal, de que só a fé importa, a rotina de atividades de uma vida de orações e preces em um monastério teria então de ser admitida como tanto efeito quanto a vida dos contratos e negócios, algo que se apresenta como conveniente para a sobrevivência, mas que não garante necessariamente alcançar a salvação, ou a fé verdadeira. Entretanto, as atividades-meio, seculares, de marcenaria, negócios, guerras, são acolhidas como atividades dignas e úteis pela declaração em tela; mas as atividades-fim, divinas, relacionadas a intensificar o contato com Deus e as Sagradas Escrituras, as orações e datas reservadas para dedicar-se aos afazeres divinos, deveriam ser descartadas – o que parece contraditório.
Restaria, ainda, em tese, considerar como se alcança uma fé verdadeira. Não seria a fé verdadeira justamente aquela que se traduz em fazer boas obras, a qual tem preferência pela luz, pois não querer esconder más obras, como ensinou Cristo? Neste trecho a Confissão de Fé de Augsburgo não propõe qual é a causa inicial da fé verdadeira, nem o critério para ajuizar uma fé como verdadeira, ou discernir uma fé como superficial. Uma pessoa dedicada a uma rotina de orações e boas obras - como Santo Paulo ou Santo Agostinho - bem poderá ter obtido desses benefícios alcançar uma fé verdadeira, e a própria Confissão de Augsburgo faz uso de suas boas obras para asseverar a fé. No entanto, o exemplo de vida deles não é considerado, nem se cogita como aderiram à fé, ou obtiveram bons resultados; curiosamente, são tomadas apenas as obras deles - cartas e livros. Mas essas cartas, considerações e livros não foram produtos obtidos diretamente da fé: houve nesse entretempo uma série de trabalhos resultando em obras junto a comunidades, ensejando as reflexões que estão contidas nas obras desses dois Santos de referência.
A Confissão se refaz argumentando que não descarta a importância de boas obras:
“Ensina-se, ademais, que boas obras devem e têm de ser feitas, não para que nelas se confie a fim de merecer graça, mas por amor de Deus e em seu louvor. Sempre é a fé somente que apreende a graça e o perdão dos pecados. E visto que pela fé é dado o Espírito Santo, o coração também se torna apto para praticar boas obras. Porque antes, enquanto está sem o Espírito Santo, é demasiadamente fraco.”
Mas permanece o problema determinar a origem dessa fé verdadeira - conforme a Confissão de Augsburgo, seria o próprio Deus, é o que se afirma, o Espírito Santo. Os luteranos não consideram que Deus se manifesta por meio de atividades que, por sua vez, resultam em boas obras, sendo a fé desse modo adquirida ou fortalecida? Haveria então a pergunta: por que alguns persistem na fé, e outros a abandonam?
A fé é transmitida por meio da evangelização, e a evangelização é uma boa obra - por sua vez resultante de atividades essenciais, a oração, a disciplina, os trabalhos de leitura diários. Sem trabalhos não haveria boas obras dos Apóstolos, e sem a humildade em atribuir a Deus a autoria dessas obras que perfizeram, a fé em Cristo não teria chegado até nós, nem se instalado como coisa nossa. De modo que parece difícil considerar verdadeira ou factível uma fé que independa das obras, como coisa separada, ou que as julgue secundárias, por mais não encontremos nas obras nosso quaisquer méritos, mas mérito do Senhor. Como o próprio Cristo sugeriu, dar bom fruto é sinal de estar ligado à vinha da fé em Cristo, mas crer em Cristo significa crer numa instrução de serviço, de perfazer boas obras.
Sobre o culto aos Santos, o documento luterano afirma que
“Do culto aos santos os nossos ensinam que devemos lembrar-nos deles, para fortalecer a nossa fé ao vermos como receberam graça e foram ajudados pela fé; e, além disso, a fim de que tomemos exemplo de suas boas obras, cada qual de acordo com sua vocação, assim como Sua Majestade Imperial pode seguir, salutar e piedosamente, o exemplo de Davi, fazendo guerra ao turco; pois ambos estão investidos em ofício real, que exige protejam e defendam os seus súditos. Entretanto, não se pode provar pela Escritura que se devem invocar os santos ou procurar auxílio junto a eles. "Porquanto há um só reconciliador e mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo," 1 Tm 2,60 o qual é o único Salvador, o único Sumo Sacerdote, Propiciatório e Advogado diante de Deus Rm 8.61 E somente ele prometeu que quer atender a nossa prece. E buscar e invocar de coração a esse Jesus Cristo em todas as necessidades e preocupações também é o culto divino mais elevado segundo a Escritura: "Se alguém pecar, temos Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o justo, etc.”
Ponderamos que também esta proposta de Lutero está em consonância com o que se defende no Catecismo da Igreja Católica: os Santos devem ser honrados com a memória do exemplo, para fortalecer nossa fé e de que suas boas obras sirvam de exemplo. A precedência de Cristo sobre todos os Santos também é naturalmente afirmada pelo Catecismo da Igreja Católica. Entretanto, o luteranismo parece tomar como abuso e excesso as devoções de fieis aos Santos, como prossegue o documento.
“Visto, pois, que em nossas igrejas nada se ensina sobre os artigos da fé que seja contrário à Sagrada Escritura ou à igreja cristã universal, havendo-se apenas corrigido alguns abusos, que, em parte, se introduziram por si mesmos com o correr do tempo, e em parte foram estabelecidos à força, vemo-nos obrigados a recenseá-los e a indicar a razão por que nestes casos se admitiu modificação, a fim de que a Majestade Imperial possa ver que não se procedeu aqui de maneira não-cristã ou petulante, porém que fomos compelidos a permitir tal modificação pelo mandamento de Deus, que com justiça se há de respeitar mais do que qualquer costume.”
Novamente Lutero precisa ser entendido em contexto histórico, pois no tempo medieval, em que se encontrava, de transição ao Renascimento, recusar as devoções a um Santo para preferir estudar a Palavra de Cristo, na administração de tempo e esforço limitados, poderia ser questionado como uma quebra de conduta: a Confissão de Fé de Augsburgo fala em algo “em parte estabelecido à força”. De fato, qualquer Santo antes aprovaria que se dedicassem esforços à Palavra de Cristo do que à própria vida. E, neste ponto, Lutero talvez se refira à Virgem Maria, mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, a qual ganhou um protagonismo muito grande na elevação de novas paróquias, templos e santuários, frequentemente colocada no centro das atenções e das retratações do Evangelho, em afrescos, pinturas e estátuas.
Lutero, contudo, não parece contemplar a atividade que os Santos permanecem exercendo desde a vida eterna, por meio dos milagres e intercessão, e os favores deles que conduzem os fieis até o conteúdo essencial da mensagem de Cristo. Pois nos Salmos e no Apocalipse há registro de que os Santos seguem vivos e atuantes no Templo, “o servem, dia e noite”, abrigados “na tenda do Senhor”:
“Então, um dos Anciãos falou comigo e perguntou-me: “Esses, que estão revestidos de vestes brancas, quem são e de onde vêm?”. Respondi-lhe: “Meu Senhor, tu o sabes”. E ele me disse: “Esses são os sobreviventes da grande tribulação; lavaram as suas vestes e as alvejaram no sangue do Cordeiro. Por isso, estão diante do trono de Deus e o servem, dia e noite, no seu templo. Aquele que está sentado no trono os abrigará em sua tenda. Já não terão fome, nem sede, nem o sol ou calor algum os abrasará, porque o Cordeiro, que está no meio do trono, será o seu pastor e os levará às fontes das águas vivas; e Deus enxugará toda lágrima de seus olhos”. (Apocalipse 7, 13-16, grifo nosso)
E ao mesmo tempo, descansam do trabalho, porque as obras prosseguem:
“Então ouvi uma voz do céu, que dizia: Escreve: Bem-aventurados os mortos que desde agora morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem dos seus trabalhos, pois as suas obras os acompanham.” (Apocalipse 14, 13).
Ora, a própria Confissão de Fé Augsburgo colhe da obra de São Paulo e de Santo Agostinho, provando que os Santos continuam trabalhando e intercedendo, por meio de suas obras, para que a fé dos fieis não se desvie nem se corrompa. A Fé de Augsburgo está baseada em obras dos Santos.
Prosseguindo a leitura, o artigo 22 da Confissão de Fé de Augsburgo, os luteranos defendem a comunhão de ambas as espécies - o que é feito hoje na Igreja Católica, sem nenhuma necessidade de contencioso. É indubitável e autoevidente que todos os fieis preferem comungar de ambas as espécies, e saem muito mais reforçados na fé com a Eucaristia completa.
No artigo seguinte, sobre o matrimônio dos sacerdotes (art. 23), a licença que se concedem os luteranos se dá pelo motivo da incontinência, é o que justificam. O argumento não parece suficiente, tendo em conta que a incontinência também ocorre nos casamentos, e nem por isso eles são necessariamente desfeitos, ou indesejáveis. O documento encontra muito amparo no cânone bíblico para recomendar o casamento, disso não há dúvida. Hoje, a tese de que sacerdotes seriam melhores pudessem ter liberdade em seu exercício para contrair matrimônio, sem abrir mão do ofício do pastoreio, ainda encontra restrições na Igreja - Raimondo Spiazzi, O. P., conselheiro do Papa Pio XII, elaborou recentemente uma tese similar, muito bem fundamentada, demonstrando que não havia amparo nas evidências históricas de que o celibato deveria ser matéria de direito canônico, mas teve de retirá-la sob risco de ser penalizado. As autoridades eclesiásticas ignoraram os benefícios para as comunidades e muito se irritaram em que se quisesse reverter a ideia que hoje prevalece, de que a Igreja se encontra no-fim-dos-tempos, demandando empenho completo e integral dos sacerdotes.
Mas a princípio, já existem funções dentro da Igreja em que autoridades celebrantes do serviço da missa são autorizados ao matrimônio - os diáconos. É visível, por outro lado, o enorme hiato entre a formação dos diáconos e dos bispos, os quais com muito maior domínio conseguem transmitir a Palavra e governar as complexas demandas desse ofício. De modo que, mesmo se em tese pudesse admitir como desejável o matrimônio de sacerdotes, na prática, embora se encontrem naturalmente exceções, o que se verifica é um maior e melhor nível de proficiência no exercício das celebrações pelos sacerdotes em celibato.
Nada impede acreditar, entretanto, que o matrimônio dos Apóstolos foi importante para inserir a família como um projeto a ser incorporado à Igreja – tanto é assim que, embora não se fale nos Evangelhos da esposa de São Pedro, Cristo, ao curar a sogra de São Pedro, permitiu que ela se colocasse também a Seu serviço. A invisibilidade da esposa de São Pedro no Evangelho não foi ainda alvo do trabalho analítico de nenhum Santo ou doutor da Igreja. Mas Lutero se aprofunda nesse problema, recordando a disposição divina sobre a natureza humana, tendo Deus criado o homem como um só gênero, macho e fêmea, portanto tendo pensado o gênero humano formado por um par, um casal.
Quando a Confissão de Fé de Augsburgo recorda, entretanto, as palavras de Cristo, ao ensinar sobre o casamento, em São Mateus 19, vale-se do evento para ponderar que poucas pessoas têm o dom da castidade. Neste trecho o texto parece um pouco confuso, pois Cristo estava afirmando nessa ocasião que nem todos estavam aptos para o rigor de um casamento, em resposta a uma consulta sobre a legitimidade de se divorciar. Era , portanto, uma afirmação justamente em contrário: casar era o desafio maior de guardar castidade e dedicação até o fim, e não o contrário, permanecer fora de um matrimônio. De modo que a generalização do problema da continência, para justificar seria melhor casar, não parece encontrar respaldo no Evangelho, já que o compromisso do matrimônio, para Cristo, é um dever muito mais grave, indissolúvel e absoluto, algo que demanda aptidão e, caso não se possa cumprir até o final, melhor permanecer solteiro, é o que ele sugere. Os luteranos recordam então as palavras de São Paulo: "Por causa da impureza, cada um tenha a sua própria esposa.”; e também que "É melhor casar do que viver abrasado”, além de recordar conselhos dado por São Paulo a São Timóteo, de que o bispo a ser escolhido por cada comunidade tivesse uma só mulher, para ser irrepreensível. Mas nesse trecho se omite o conselho primeiro de São Paulo, precedente, para que não casem:
“Porque quisera que todos os homens fossem como eu mesmo; mas cada um tem de Deus o seu próprio dom, um de uma maneira, e outro, de outra. Digo, porém, aos solteiros e às viúvas, que lhes é bom se ficarem como eu. Mas, se não podem conter-se, casem-se. Porque é melhor casar-se do que abrasar-se." (1 Coríntios 7, 7-9, grifo nosso)
O conselho principal de São Paulo é “ser como ele”, do que se deduz não se casar ou permanecer viúvo; e apenas se não puderem seguir esse conselho, que se casem. Tinha em vista certamente a maior mobilidade para a missão de evangelizar os povos, permanecendo os fieis solteiros ou viúvos. Nada contraditaria, é claro, que os luteranos ainda assim se posicionassem favoráveis ao matrimônio de sacerdotes como possibilidade. Contudo a justificação dessa abertura deveria se fazer acompanhar da mensagem completa, de que o matrimônio é um dever oneroso e que São Paulo não sugeriu se casassem: melhor seria permanecer solteiro ou viúvo, se vocacionados para missões de evangelização. Recorde-se, ainda, que Cristo instruiu vale a pena deixar de lado um projeto de vida voltado para família e bens, a fim de segui-Lo, como citamos anteriormente, propondo essa iniciativa radical a dois voluntários que se apresentaram a ele; e que os Apóstolos e discípulos deveriam seguir em missão evangelizadora, peregrinando pelas cidades e entrando nas casas que os recebessem, “dois a dois” (São Marcos 6, 7-13).
Também deste trecho da proposta da Confissão de Fé de Augsburgo se deveria analisar o contexto mais amplo. Pois fato é que os sacerdotes no século XVI, assim como nos séculos posteriores até alcançar nosso tempo, deixaram de pregar o Evangelho seguindo o modelo dos primeiros impulsos de evangelização na Igreja Primitiva. Com a conversão do Império Romano e de toda a Europa, a evangelização iria ganhar uma nova propulsão apenas depois das grandes navegações e os missionários sempre configuraram, desde esse princípio, uma minoria dentro do clero, e não se vê, mesmo hoje, bispos e arcebispos missionários, os quais tomaram encargos de governo e permanecem sediados nas localidades mais centrais, e não nos locais mais inóspitos e periféricos.
Até o tempo de Lutero, portanto, os sacerdotes as comunidades cristãs em sua maioria não se deslocavam pregando de cidade em cidade, e haviam se estabelecido em paróquias e dioceses fixas, ainda que se revezassem e houvesse mudança de sede regularmente. A contradição é evidente, entre uma Igreja que exige dos sacerdotes o celibato e a disponibilidade incondicional, de uma Igreja no-fim-dos-tempos, mas que ao mesmo tempo não estabelece uma rotina de peregrinação consoante, ou de serviço missionário a ser realizado, permitindo que as mais altas autoridades da Igreja fiquem instaladas sempre numa mesma matriz, geralmente segura e luxuosa. Fazia sentido, então, que Lutero propugnasse levantar a exigência, já que os pastores ficariam pregando apenas em suas comunidades, o que não seria incompatível com a vida familiar e o cuidado com os filhos. Interessantemente, nem ele nem os sete príncipes que assinam a declaração aprofundam os motivos e a análise, como se estivessem na superfície dessa proposta legítima, fieis à ideia de buscar maior coerência nas disposições da Igreja sobre o clero, ainda que não pudessem enxergar o fundo legítimo de suas pretensões.
Sobre a missa (art. 24), Lutero antecipou o movimento do Concílio Vaticano II, consolidado por meio do Sacrossanctum Concilium, o que restabelece a liturgia em conformidade com os rituais de maior simplicidade da Igreja primitiva, em substituição ao Concílio de Trento. Ele e os demais luteranos criticam as missas encomendadas por intenções: consideram indesejável que a missa tenha se tornado uma obra para se obter todo tipo de benefício de Deus, e que isso seria perpetrar o propósito da missa com interesses individuais. Critica, ainda, o propósito de celebrar missas para angariar dinheiro.
Neste artigo parece difìcil opinar, pois as intenções geralmente são lidas apenas ao início da missa, e há de se considerar a necessidade de misericórdia pelos pedidos muitos que os fieis apresentam a Deus prestando a Ele devido culto. Seria impiedoso cogitar como indesejável celebrar uma missa pelo restabelecimento da saúde de um ente querido, mesmo porque não há evidências de que os Apóstolos e primeiros discípulos tivessem proibido, ou mesmo não o tivessem feito. São Máximo relata na Vida da Virgem que os Apóstolos se reuniram quando Nossa Senhora padeceu, antes de dormir. Não teria sido conveniente, que tivessem realizado uma celebração com essa especial intenção por sua saúde? Há de se considerar, ainda, os custos de manutenção da Igreja e com a manutenção dos serviços religiosos. Rezar missas adicionais para obter mais ofertas, e com isso manter serviços hospitalares gratuitos aos mais pobres, ou financiar missionários em lugares não-cristãos, renderiam motivos mais do que dignos para celebração e para a coleta de ofertas. Não há uma incompatibilidade entre buscar melhorar a oportunidade de receber ofertas e a realização dos propósitos que reúnem a Igreja.
Quanto à confissão, art. 25, Lutero critica as penitências estabelecidas ao final do sacramento pelos sacerdotes:
“Em tempos passados os pregadores, que ensinavam muito a respeito da confissão, não mencionaram sequer uma palavrinha concernente a esses pontos necessários, porém apenas martirizaram as consciências com longa enumeração de pecados, com satisfações, indulgências, romarias e coisas semelhantes. E muitos de nossos oponentes confessam eles mesmos que escrevemos e tratamos do verdadeiro arrependimento cristão mais apropriadamente do que se fez, anteriormente, por longo tempo.” (Confissão de Fé de Augsburgo, art. 25).
Parece importante sublinhar que, ao menos neste tempo, não existem mais penitências determinadas como enumeração de pecados, satisfações, indulgências, romarias, ou coisas semelhantes. Essas promessas são iniciativas voluntárias dos próprios fieis, e não penitências estabelecidas pelos confessores. O confessionário hoje funciona como um local de atendimento e orientação espiritual, pelo que o foco da declaração em consolar e providenciar a absolvição parece estar de pleno acordo com a prática atual da Igreja. E neste trecho surge uma certa inconsistência com a ideia principal de Lutero, de que não se deve confiar nas obras, quando se afirma que “escrevemos e tratamos do verdadeiro arrependimento cristão mais apropriadamente”. Pois conforme a fé católica, e conforme também sugeria nos artigos anteriores a fé luterana, é Deus quem propicia o arrependimento do pecador, assim como o perdão dos pecados, e não uma obra humana de convencimento, de melhor explicação ou de interpretação mais apropriada do sacramento.
Sobre a distinção de comidas, jejuns, cerimônias, vestimenta e ordens semelhantes, os luteranos afirmam três razões para incluir o tema como uma controvérsia em seu tempo:
“Em primeiro lugar, com isso se obscurecem a graça de Cristo e a doutrina da fé, que o evangelho põe diante de nós com grande seriedade, insistindo vigorosamente que se considere o mérito de Cristo como algo de grande e precioso e se saiba que a fé em Cristo deve ser posta muito acima de todas as obras. (…) Essa doutrina extinguiu-se quase que por completo com isso de se haver ensinado a merecer graça por jejuns prescritos, distinção de manjares, vestimenta, etc. Em segundo lugar, tais tradições também obscureceram os mandamentos de Deus, pois foram colocadas muito acima dos preceitos divinos. Só se considerava vida cristã isto: observar as festas dessa maneira, rezar dessa maneira, jejuar dessa maneira, vestir-se dessa maneira. A isso é que se chamava vida espiritual, cristã. Ao mesmo passo, outras obras necessárias e boas eram consideradas coisa mundana, não-espiritual, a saber, aquelas que cada qual deve fazer de acordo com sua vocação, como, por exemplo, que o chefe de família trabalhe para sustentar mulher e filhos e criá-los no temor de Deus, que a mãe de família dê a luz filhos e zele por eles, que um príncipe e magistrado governe o país e o povo, etc. Tais obras, ordenadas por Deus, cumpria tê-las na conta de coisa secular e imperfeita. As tradições, porém, tinham de ter o esplêndido nome de serem as únicas obras santas e perfeitas. Razão por que não havia limite nem fim quanto à feitura de tais tradições. Em terceiro lugar, essas tradições se tornaram grande peso para as consciências. Porque não era possível guardá-las todas, e o povo todavia pensava que isso era culto divino necessário. Escreve Gérson que muitos caíram em desespero com isso e alguns até cometeram suicídio por não terem ouvido nenhum consolo da graça de Cristo. Vê-se nos sumistas e teólogos como as consciências eram confundidas.” (Confissão de Fé de Augsburgo, art. 26, Da distinção de comidas).
A proposta de Augsburgo parece tomar a situação absurda pela regra; pois não há, efetivamente, no direito canônico ou na tradição da Igreja um enfoque tão importante sobre as tradições relacionadas às efemérides. As obras dos Santos, valorizados pela Igreja Católico como modelo de devoção, não tratam de qualquer aspecto relacionado a comida ou vestimenta, salvo quando para prevenir os pecados capitais da gula e da vaidade. Portanto, embora pudéssemos reconhecer que, na prática da piedade popular, nas pequenas comunidades, esses detalhes ganhem uma maior proporção nas festas e celebrações, como a determinação de não comer carne nas sextas-feiras Santas, esses detalhes fazem parte de um contexto mais amplo de memória de Cristo. Num dia em que se recorda a tristeza da crucificação e morte de Cristo, não conviria dar uma festa, portanto se sugere então a abstenção de carnes e bebidas para refletir uma momento triste. Se mera tradição humana basta para ser católico, salvo, ou tomar como suficiente a fé, temos certo que não, em todos e quaisquer tempos em que se olhe para os ensinamentos transmitidos pela Igreja. A completa ausência de regulamentos e de estudos teológicos patrocinados pela Igreja relacionados a esses detalhes de comidas e vestimentas talvez seja a maior prova disto.
Agora: o próprio documento luterano recorda a importância do jejum para enfrentar provações, referindo-se ao Evangelho (São Lucas 21,34, São Mateus 17, 21; São Marcos 9,29; Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios 9, 27). Então não parece haver neste artigo nenhum motivo para controvérsia, considerando que a Igreja pode definir quais os momentos mais propícios para praticar o jejum que o Evangelho e os Apóstolos ensinam. Considerando que a vida cristã é uma vida em comunhão, faz muito sentido que certas práticas de jejum sejam acordadas e consentidas coletivamente, mas não se tem notícia de que fossem obrigatórias, nem condição para declarar-se cristão e católico. Parece, novamente, que Lutero faz referência a uma realidade provinciana que lhe é específica, e não parece de todo inútil que assim se denuncie, considerando que em muitas pequenas comunidades interioranas, se dá por suficiente a observância estrita dessas tradições do calendário, para arrogar uma fé superior à dos demais, abrigando nessa tradição o pecado da soberba.
Nos dois artigos seguintes, Lutero aborda os votos monásticos (art. 27) e o poder dos bispos (art. 28). Sobre os votos monásticos, os signatários da Confissão de Fé de Augsburgo os consideram nulos. Além da crítica de que são muito jovens aqueles que fazem esses votos, ainda sem total consciência e conhecimento, consideram que “todo culto divino instituído e escolhido por homens, sem mandamento e ordem de Deus, para alcançar justiça e a graça de Deus, é oposto a Deus e contrário ao santo evangelho e à ordem de Deus”. Disso concluem: “Segue-se, portanto, daí que esses votos costumeiros foram cultos divinos impróprios, falsos.”
A crítica de Lutero olvida do mandato que Cristo concedeu à Igreja para decidir sobre questões que surgiriam posteriormente, o poder das chaves. As referências são abundantes nos Evangelhos e na própria Santa Ceia, Cristo novamente assevera a delegação que concede aos amigos, afirmando que tudo que eles pedirem, o Pai lhos concederá. Portanto, os Evangelhos não se encerram no texto fixado por eles, abrem-se ao desenvolvimento posterior da Igreja. Ora, viver em um mosteiro com voto de castidade, por opção própria, não contraria os mandamentos de Deus. Cada pessoa poderá ter juízo sobre o que é melhor para si e para a própria salvação, e as fraternidades que acolhem os fieis desejosos de viver uma vida de oração e trabalhos para a comunidade teriam a celebrar com isso. Os mosteiros não são espaços inócuos, recebem fieis e pedidos, produzem alimentos e distribuem bens da Igreja, realizam casamentos, protegem famílias, oferecem formação.
Contudo, a declaração oferece uma perspectiva negativa e contrária aos mandamentos de Deus, por formular uma estrutura diversa do matrimônio e da vida familiar. Para considerar o matrimônio algo mandatório, porque Deus teria criado para cada macho uma fêmea, e opção diversa contrária ao plano divino, seria necessário ignorar que Cristo não teve esposa. No seu ensinamento sobre matrimônio, o próprio texto da Confissão de Fé de Augsburgo recorda que existem diferentes vocações - nem todos têm vocação para o casamento.
Mas a crítica de Lutero parece bem colocada ao expressar a razão de seu incômodo com os votos monásticos: nem tanto o modo de vida, ou a vocação para a castidade, mas sim o fato de que diversas ordens eram consideradas estados mais evoluídos da perfeição cristã: “Além de tudo isso também persuadiram as pessoas de que as ordens espirituais inventadas são estados de perfeição cristã.” (Confissão de Fé de Augsburgo, art. 27, Dos votos monásticos). Os luteranos então abominam que os votos de “pobreza, castidade e obediência” pudessem ser fonte de qualquer perfeição, tomando essas virtudes como “simulações”. Efetivamente, nem todos que foram admitidos a essas ordens religiosas eram pobres. Optaram pela pobreza, o que Lutero considera uma “simulação”. Também se forçam à castidade, o que então se considera sem uso, para efeito de virtude, já que, para o texto, assim se destituem da livre escolha. O problema dos votos monásticos para os luteranos, ainda, seria fundamentado no cânone bíblico:
“Diz São Paulo em Gálatas 5: "De Cristo vos desligastes vós que procurais justificar-vos na lei, da graça decaístes." Por isso também estão desligados de Cristo e decaíram da graça aqueles que querem ser justificados por intermédio de votos, pois roubam a honra de Cristo, o único que justifica, e dão essa honra a seus votos e a sua vida monástica.”
Consideramos que a crítica de Lutero sobre os votos monásticos também faz algum sentido, em um momento medieval, quando se tomava a vida religiosa como um critério social de prestígio. Os votos não levarão ninguém necessariamente à paz ou ao paraíso, se não houver o preenchimento desses votos por uma dedicação legítima ao Evangelho. A perfeição cristã efetivamente está em cumprir as disposições do Evangelho, que não se aproximam do cumprimento a leis, mas de um modo de vida aberto a incorporar os mais necessitados, por meio do serviço aos demais.
Não entendemos, entretanto, como os teólogos luteranos poderiam ignorar a passagem que se segue à exigência de Jesus, face a um voluntário querendo alcançar a perfeição, de que deixasse tudo para trás - família e bens - e O seguisse:
“Pedro começou a dizer-lhe: “Eis que deixamos tudo e te seguimos”. Respondeu-lhe Jesus: “Em verdade vos digo: ninguém há que tenha deixado casa ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou filhos, ou terras por causa de mim e por causa do Evangelho que não receba, já neste século, cem vezes mais casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e terras, com perseguições – e no século vindouro a vida eterna. Muitos dos primeiros serão os últimos, e dos últimos serão os primeiros”. (= Mt 20,17ss = Lc 18,31-34)
O que se segue da análise do Evangelho é que atender a esse chamado implica receber ainda mais família e muitos mais bens, porque a família e os bens incorporados à Igreja se multiplicam. Os mosteiros estão cheios de famílias visitantes, adotadas pelos monges, os quais passam a incorporá-las como seus próprios familiares. As terras dos monastérios paulatinamente cresceram, incorporadas por doações, e os monges gozam de muitos bens e do convívio de muitos familiares, enquanto buscam os bens celestiais. Talvez o desconhecimento dos luteranos sobre a realidade dos Monastérios fosse a razão para rechaçar esse modo de vida, ou talvez os monastérios medievais não permitissem essa leitura contemporânea, por manter pessoas isoladas em cadeias. Mas trazido para o tempo presente, o observando o grande movimento dos mosteiros, as conferências que dedicam aos mais necessitados e a hospitalidade gratuita, a abertura dos cursos de teologia à comunidade, o movimento de livros e obras, as viagens recorrentes e participação em concílios, os trabalhos nas periferias, talvez Lutero pudesse mudar de ideia.
Lutero prossegue assinalando sua perspectiva:
“Mas o povo comum concebe muitas opiniões perniciosas a partir da falsa exaltação da vida monástica, quando ouve que se enaltece sem qualquer moderação o estado celibatário. O resultado é que o povo está no estado matrimonial de consciência pesada.”
Ora, vimos que não é falsa a exaltação da vida de quem abandona família e bens para seguir Jesus Cristo em suas peregrinações para evangelizar diferentes localidades. E vimos, também, que isso não implica perder família nem bens, mas resulta na sua expansão para além da concepção de uma propriedade privada e de uma família de laços de sangue: “Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos?”, perguntou ele. E, estendendo a mão para os discípulos, disse: “Aqui estão minha mãe e meus irmãos! Pois quem faz a vontade de meu Pai que está nos céus, este é meu irmão, minha irmã e minha mãe”. (São Mateus 12, 48-50)
Não foram poucos os Santos que tiveram visões de Cristo e de outros Santos, tendo recebido o comando de conversão e mudança de vida do próprio Deus, como Santo Inácio de Loyola, Padre Anchieta, dentre outros que fundaram novas ordens para a evangelização - os jesuítas, além dos votos de pobreza, castidade e obediência, fazem o voto de dar a própria vida em libertação por um prisioneiro. Posteriormente a Lutero, conviria trazer este questionamento: uma instrução recebida de Deus na intimidade da fé não deve ser ouvida, nem seguida? De onde se poderia alegar são falsas essas convocações, se são instruções que Deus faz pessoalmente, e que renderam numerosas conversões e benefícios à evangelização?
No que diz respeito ao poder dos bispos, Lutero prega a separação entre Igreja e Estado - o que efetivamente se transcorreu no seio da Igreja Católica.
“Por isso não se devem baralhar e confundir o poder espiritual e o temporal. Pois o poder espiritual tem a ordem de pregar o evangelho e administrar os sacramentos. Também não deve invadir ofício alheio. Não deve entronizar e destronar reis, não deve ab-rogar ou minar as leis civis e a obediência ao governo, não deve fazer e prescrever ao poder temporal leis a respeito de matéria secular, conforme disse o próprio Cristo: "O meu reino não é deste mundo.” Também: "Quem me constituiu juiz entre vós?” E São Paulo, em Fp 3: "A nossa pátria está nos céus." E na Segunda Epístola aos Coríntios, capítulo décimo: "As armas da nossa milícia não são carnais, e sim poderosas em Deus, para destruir fortalezas; anulando sofismas e toda altivez que se levante contra o conhecimento de Deus.” Dessa maneira os nossos distinguem os ofícios de ambas as autoridades e poderes e mandam que os dois sejam tidos em honra como os dons mais elevados de Deus na terra.”.
Parece importante compreender que Lutero e seus seguidores escrevem em um tempo no qual ainda não havia sido celebrada a distinção entre direito civil e direito canônico, propugnada por Napoleão, séculos depois. A separação entre direito divino e direito temporal foi admitida desde a Carta Encíclica Immortale Dei, de Papa Leão XIII:
“Deus dividiu o governo entre dois poderes: o poder eclesiástico e o poder civil. Aquele, preposto às coisas divinas; este, às coisas humanas. Cada um deles no seu gênero é soberano; cada um encerrado em limites perfeitamente determinados e traçados, em conformidade com a sua natureza e com o seu fim específico. Há, pois, como que uma esfera circunscrita em que cada um exerce sua ação iure próprio (= no âmbito de seu próprio direito)” (Leão XIII, Carta Enc. Immortale Dei, n. 19).
Na jurisprudência do direito canônico, refratam-se os casos trazidos aos tribunais eclesiásticos ponderando que a Igreja reconhece, no dizer do Papa Pio XII, “uma sã e legítima laicidade do Estado” (Pio XII, L’Osservatore Romano, 24-25 de março de 1958).
Isto indicaria para uma convergência entre a Confissão de Fé de Augsburgo e a prática atual da Igreja Católica, em que as autoridades eclesiásticas não interferem nos procedimentos adotados pelos poderes públicos do governo temporal.
Também o Catecismo da Igreja Católica dispõe que
“É dever dos cidadãos colaborar com os poderes civis para o bem da sociedade, num espírito de verdade, de justiça, de solidariedade e de liberdade. O amor e o serviço da pátria derivam do dever da gratidão e da ordem da caridade. A submissão às autoridades legítimas e o serviço do bem comum exigem dos cidadãos que cumpram o seu papel na vida da comunidade política. (Catecismo, 2239)
Entretanto, desde o Concílio Vaticano II, algumas coisas mudaram dentro da abordagem da Igreja à pronta chancela de toda decisão governamental. Se bem o Catecismo prega a separação de competências e o dever da obediência às autoridades civis, e a Igreja está bem estabelecida no que diz respeito a diversas concordatas, os acordos de Sede com os governos que sediam a Sé Apostólica se obrigam a não determinar contradição ao que dispõe o Direito Canônico em matéria de fé, como é o caso do Acordo de Sede brasileiro, de 13/11/2008, Decreto Legislativo n.º 7107, de 11/02/2010), pela cláusula de respeito à liberdade religiosa e ao direito de exercer os serviços inerentes à sua própria missão, observadas as exigências da lei (artigos 2º. e 8º. da referida Convenção de Sede com a Igreja Católica Apostólica Romana).
O Catecismo também prevê que a Igreja se preocupa com o bem temporal dos fieis:
A Igreja pronuncia-se em matéria econômica e social, sempre que os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas o exigem. Ela preocupa-se com o bem comum temporal dos homens, em razão da ordenação do mesmo ao soberano Bem, nosso último fim. (Catecismo, 2458)
E, neste quesito, diverge da matéria proposta pela Confissão luterana, de que “não deve entronizar e destronar reis, não deve ab-rogar ou minar as leis civis e a obediência ao governo, não deve fazer e prescrever ao poder temporal leis a respeito de matéria secular”, tomando para si o direito de se desobrigar de deveres que vão contra a fé católica, não precisando pedir licença para demitir governantes que ofendam a Cristo ou à Igreja, e resistir inclusive por armas, esgotadas as possibilidades, se for conveniente e necessário:
“O cidadão é obrigado, em consciência, a não seguir as prescrições das autoridades civis, quando tais prescrições forem contrárias às exigências de ordem moral, aos direitos fundamentais das pessoas ou aos ensinamentos do Evangelho. A recusa de obediência às autoridades civis, quando as suas exigências forem contrárias às da recta consciência, tem a sua justificação na distinção entre o serviço de Deus e o serviço da comunidade política. «Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus» (Mt 22, 21). «Deve obedecer-se antes a Deus que aos homens» (Act 5, 29):
«Quando a autoridade pública, excedendo os limites da própria competência, oprimir os cidadãos, estes não se recusem às exigências objectivas do bem comum; mas é-lhes lícito, dentro dos limites definidos pela lei natural e pelo Evangelho, defender os seus próprios direitos e os dos seus concidadãos contra o abuso dessa autoridade».
A resistência à opressão do poder político não recorrerá legitimamente às armas, senão nas seguintes condições:
1 – em caso de violações certas, graves e prolongadas dos direitos fundamentais;2 – depois de ter esgotado todos os outros recursos;3 – se não provocar desordens piores;4 – se houver esperança fundada de êxito;5 – e se for impossível prever razoavelmente soluções melhores. (Catecismo, 2242-2243)
Parece que, se bem em tese a Igreja se pronuncia sobre assuntos da esfera civil em comitês e processos legislativos, na prática, esse dispositivo previsto no Catecismo da Igreja de resistência ao poder civil foi raramente usado, aproximando-se a prática da Igreja Católica, nas suas decisões de tribunal eclesiástico, muito mais do luteranismo do que do Catecismo (vide por exemplo Prot. N. 0102/22 do Tribunal Eclesiástico Interdiocesano e de Apelação de Brasília). De modo que a aproximação entre a denominação luterana e a católica também neste aspecto não parece algo impossível.
Independentemente dessa proximidade na prática, haveria alguma contradição em tese? Qual seria a leitura à luz do Evangelho, sobre a relação entre poder divino e poder temporal, na Confissão de Fé de Augsburgo? Notamos uma eventual contradição. Pois se bem os bispos não devem interferir nos assuntos temporais, temos o seguinte afirmado:
“Quando, porém, os ordinários são negligentes em tal ministério, os príncipes têm a obrigação, quer o façam prazerosamente ou não, de pronunciar nisso direito aos seus súditos, por amor da paz, para evitar discórdia e grandes distúrbios nos territórios.” (Confissão de Fé de Augsburgo, art. 28, Do poder dos bispos).
Ora, se parece razoável que um príncipe ou poder temporal venha a interferir em jurisdição divina dos bispos, por que não seria razoável que os bispos viessem a interferir em jurisdição temporal, quando esta falhasse em garantir os efeitos necessários? O fundamento para impedir a intercessão de bispos sobre matérias temporais que possam comprometer o bem-estar dos fieis também não poderia estar fundamentado sobre o trecho de São Lucas 12, 14: “Quem me constituiu juiz entre vós?”. Pois em seguida ao pedido do súdito de Cristo, de que intercedesse favoravelmente por uma divisão justa em herança, Cristo faz um sermão a respeito, intercedendo, desde o seu lugar divino, pela resolução do problema no plano temporal, com recomendações contra a avareza. Não se poderia ignorar que um sermão de Cristo contra a avareza, contando a parábola daquele homem rico que morre, sem gozar de seus bens acumulados, certamente terá efeito de mover aquela parte resistente em partilhar com maior equanimidade os bens.
No entanto, se nos distanciarmos dos detalhes desse artigo, encontraremos que Lutero e os seus provavelmente teriam se colocado de acordo com os trechos do Catecismo da Igreja Católica estabelecido desde 1992. Pois, afinal, todo o luteranismo é um movimento fundamentado no direito à resistência contra práticas que vão contra a consciência e a fé. Parece natural que Lutero e os signatários da Confissão de Fé de Augsburgo concordariam com o direito da resistência a um poder temporal que excedesse os limites da própria competência, oprimindo os cidadãos, já que eles próprios assim procederam com poder mais alto, o poder eclesiástico.
O que há de se notar é que o documento se dirigia a uma autoridade temporal, o Imperador Carlos V, e certemente nem os príncipes que eram signatários da confissão quereriam confessar uma fé reduzindo a própria autoridade, nem Lutero procederia desse modo, já que desejava obter o parecer favorável do Imperador, a fim de que sua proposta fosse tomada como aceitável. É certo que a Confissão trazia em seu bojo elementos que interessavam ao poder temporal, a saber, a redução do poder do Papa sobre a entronização ou destituição de governantes, e colocava tantos príncipes signatários quanto o Imperador em uma posição de acolher posição em interesse próprio.
Ponderações sobre a Confutatio
A leitura deste documento propiciou compreender um pouco melhor os motivos que levaram Lutero a protestar contra as práticas da Igreja Católica em seu tempo. Mencionadas resumidamente pelos signatários da Confissão de Fé de Augsburgo: eram queixas sobre “indulgências, sobre peregrinações, abuso em matéria de excomunhão”. No mais todos confessavam substantivamente a mesma fé cristã coincidente com o Evangelho, sem bem podemos encontrar variações que parecem normais, cuja ocorrência é natural desde as distintas perspectivas na Igreja. Logicamente, teria sido necessário a análise viesse acompanhada de um maior detalhamento do contexto religioso de seu tempo, embora tenhamos tangenciado a questão.
O fato adicional é que o protestantismo ensejou a reforma, e ao logo do tempo isso produziu uma preocupação no seio da Igreja Católica de não se desvencilhar do teor do Evangelho por meio de novas práticas e tradições. O benefício, portanto, foi inegável, posto que os movimentos religiosos se viram obrigados a resistir às críticas de Lutero, salvaguardando em maior medida o foco sobre Cristo do que em suas regras. Haveria ainda de se sublinhar o espírito não-divisivo com o qual a Confissão de Fé de Augsburgo levantou as controvérsias:
“Não se deve julgar que qualquer coisa haja sido dita ou mencionada por ódio ou para infamar. Relatamos apenas aquilo que julgamos necessário aduzir e mencionar, a fim de que daí se pudesse tanto melhor perceber que, em doutrina e cerimônias, entre nós nada se recebeu que seja contra a Sagrada Escritura ou a igreja cristã universal. Porque deveras é público e manifesto havermos evitado, diligentissimamente e com a ajuda de Deus (para falar sem vanglória), que se introduzisse, alastrasse e prevalecesse em nossas igrejas qualquer doutrina nova e ímpia.”
A Igreja Católica foi aquela responsável pela cisão ao determinar a excomunhão daqueles que vieram a reclamar um maior cuidado com a doutrina para que se preservassem os valores originais do Evangelho, sem revisar cautelosamente, ou ao menos de início, suas práticas. A reação da bula papal foi visceral, por ter sido apresentada uma crítica pública à Igreja, e isso se observa pela falta de diálogo com o sacerdote, por uma bula formulada com base em relatos de terceiros: “Custa-nos expressar, em nossa tristeza e aflição, o que chegou aos nossos ouvidos, desde há algum tempo, através de notícias de homens de confiança e do rumor geral.”, afirma a bula Exsurge Domine. E antes disso, deixa escapar o desconforto com a autoidentificação com os santos apóstolos, num certo grau de soberba, e com a quebra hierárquica, sinalizando um certo apego à autoridade: “Ele [o herege] os reprova [os santos apóstolos] por violação a vosso ensinamento, em vez de implorá-los”. Ao que tudo indica, a bula não se baseou num diálogo nem convocação de Lutero para conversar sobre suas críticas para reconciliar quem protestava; e, posteriormente, quando se publicou a Confissão de Fé de Augsburgo, manifestando o desejo de reconciliação, não houve tampouco um movimento da Igreja nessa direção, mas apenas a Confutatio, um documento produzido por alguns teólogos, que, conforme os luteranos, teria sido lido, mas não oficialmente publicado - o que temos disponível é uma anotação que fizeram da Confutatio.
Por mais a argumentação dos protestantes não fosse completamente acurada, as mudanças pelas quais a Igreja passou após o Concílio Vaticano II, retornando também às práticas da Igreja primitiva, abandonando tradições novas excessivas e condenando o abuso, comprovam que os pontos levantados pelos luteranos não eram completamente despropositados, no final das contas.
Ficou saliente, entretanto que a abordagem da Igreja às recomendações de Lutero fracassou em prevenir o cisma da Igreja e a subdivisão do movimento cristão em outras denominações. Tampouco poderíamos desprezar a notícia de que a Confissão de Fé de Augsburgo refere-se à Igreja Católica como “oponentes” e “adversários” algumas vezes. Se o fez, parece surgir porque efetivamente Lutero foi excomungado, e colocado sob o juízo público de maneira a excluir do seio da Igreja aqueles que o seguissem, receando com isso o intento de que se intitulassem outra denominação, assim ensejando a divisão da Igreja.
E, neste ponto, deveríamos refletir coerentemente sobre a alta ineficácia da instituição da excomunhão. Pois excluir membros da Igreja que buscam dar um autêntico sentido ao Evangelho, por causa de controvérsia, é um procedimento que cria empecilhos adicionais a alcançar a reconciliação. Seria hipocrisia considerar que a mera formalização de uma exclusão, supostamente feita pelo próprio fiel que se aparta da doutrina, visaria à reconciliação. Pois é muito mais trabalhoso dirimir controvérsias com alguém excomungado do que alguém que se encontra dentro do mesmo seio da Igreja.
Considerando, ainda, que o Espírito da Confissão de Fé de Augsburgo era encontrar um mínimo denominador comum para obter tolerância e proteção à fé que praticavam, deveríamos recordar que o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo ofertou a parábola da pronta reincorporação do filho pródigo, depois de ter deixado o lar paterno em busca das suas próprias considerações. E parece completamente disparatado que, tendo sido produzida uma Confissão de Fé asseverando práticas que parecem a princípio não muito distantes do que é aceitável pela Igreja nos tempos de hoje, e que se encontram amparadas no Evangelho e nas obras dos Santos, não se tivesse agido do mesmo modo que o pai do filho pródigo, admitindo o que nele se via de acordo e assinalando o que poderia ser melhorado - dando o banho e vestindo o filho que retorna - para que fosse prontamente reincorporado, num gesto de boas-vindas pelo seu retono, e de concórdia.
Entretanto, a Igreja procedeu ao exercício inverso, à refutação desses artigos, para continuar excluindo os luteranos, o que deu então seguimento à Apologia de Melâncton. Se por um lado os luteranos deixaram de tratar a Igreja Católica como o seio da própria família, dirigindo-se ao clero como “oponentes”, ou “adversários”, ao mesmo tempo se vê que as autoridades eclesiásticas não foram capazes de desconstruir essa hostilidade, aprofundando as diferenças. Poderia se ter aproveitado a oportunidade e abertura a uma revisão “amigável” do texto, com que se submeteu a declaração ao Imperador Carlos V, para encontrar o substrato comum que fazem luteranos e católicos parte da mesma família. Relevar controvérsias teológicas que não são substantivas, e conviver com as críticas ao monasticismo, teria sido essencial para garantir o que era de maior importância para Deus, manter quem é amado no seio da mesma Igreja. E afinal as divergências que foram assinaladas pelas refutações católicas, naquele tempo, não fariam tanto sentido neste tempo posterior ao Concílio Vaticano II. Vejamos antes qual foi a reação luterana às refutações preparadas pelas autoridades eclesiásticas ao luteranismo.
Análise da Apologia de Melâncton.
A apologia de Melâncton, discípulo de Lutero, surge para lidar com as refutações em resposta à Confissão de Fé de Augsburgo, durante encontro da Liga de Esmalcalda (Schmalkaldischer Bund). A apologia foi publicada em 1537 e está dividida em 37 partes que se dedicam a defender a Confessio Augustana, nome pelo qual também ficou conhecido o documento da Confissão de Fé de Augsburgo, em seu título em latim. O texto “Confutatio Augustana” teve sua redação liderada por Johann Eck, um teólogo católico contra-reformista. Por sua vez, o texto de Melâncton, em resposta a Eck e seus consorciados, apenas teve resposta posteriormente, com o Concílio de Trento (1545-63). A Apologia consta disponibilizada em https://www.gutenberg.org/cache/epub/6744/pg6744-images.html .
Primeiramente, a Confutatio foi escrita a pedido do Imperador Carlos V em 5 de julho de 1530, logo depois da publicação da Confissão de Fé de Augsburg em 25 de junho de 1530. Reunidos em 27 de junho de 1530 pelo imperador, os teólogos romanos discordaram dos artigos da Confissão de Fé de Augsburgo, e o Imperador pediu assim que preparassem uma “resposta moderada”. Prepararam a Confutatio Johann Eck, John Faber, Conrad Wimpina, e John Cochlaeus, inicialmente com 280 páginas. O Imperador aceitou apenas 12 páginas, deste material, e depois de 6 semanas editando o texto, em 3 de agosto daquele mesmo ano, Alexander Schweiss, secretário do Imperador Carlos V, leu o material. O interessante é que o texto não foi publicamente liberado e dispomos apenas de uma cópia do que foi anotado pelos luteranos. Ao que tudo indica, não era um posicionamento oficial da Igreja Católica. O texto da Confutatio anotado pelos luteranos consta em https://bookofconcord.org/other-resources/sources-and-context/roman-confutation/ .
Já a apologia de Melâncton conta com cerca de 250 páginas, uma extensão proporcional ao documento Confutatio que teria sido antes recusado pelo Imperador. Vários artigos da Confissão são tomados como aceitáveis na Confutatio: 1, 2 em parte, 3, 4, depedendo da interpretação que se dá por concupiscëncia, 5, 6, mas com o acréscimo das obras, no artigo 7, recorda que a Igreja não pode excluir os pecadores, artigo 8 recorda é aceito, 9 é aceito, no artigo 10, não vê ofensa, no artigo XI, também se põe de acordo, no artigo 12, a primeira parte é aceita, e a segunda rejeitada, aceitam o artigo 13, aceitam o artigo 14, desde que o chamado respeite a lei eclesiástica, aceitam o artigo 15, exceto que sejam opostos ao Evangelho os votos religiosos, aceitam “com prazer” o artigo 16, sobre a ordem política e o governo civil, aceitam integralmente o artigo 17, aceitam o artigo 18, aceitam integralmente o artigo 19, e no artigo 20 recordam que a doutrina proposta rejeitando a importância das boas obras já havia sido rejeitada na época de Santo Agostinho, mil anos atrás .
Philip Melâncton, entretanto, aprofunda a divergência assinalada na Confutatio em alguns deles, para defender a Confissão de Fé de Augsburg. É o caso, por exemplo, da resposta ao artigo 2 da Confissão, em que a Confutatio recorda a definição de pecado original e os efeitos do batismo, e cogita esclarecer o significado que se daria à concupiscência mencionada por Lutero no texto. Melâncton interpreta isso de maneira própria e torna ainda mais inviável chegar a uma síntese. Existem pormenores no debate concernente à natureza humana e às reminiscências do pecado que parecem desnecessários e difíceis de apurar de maneira definitiva e objetiva, já que se tratam de apurações de compatibilidade entre os escritos de São Paulo e de Santo Agostinho.
No artigo 4, a Confutatio aceita a proposta de que apenas pela fé e pela graça divina é possível salvar-se, não bastando apenas as obras; salientando que as obras, entretanto, são importantes, por causa das passagens no cânon bíblico que suportam a necessidade e conveniência de boas obras. A Confutatio não menciona as parábolas e citações do Evangelho arroladas nesta análise, mas encontra passagens bíblicas também importantes sobre as obras. Também o texto da Confissão de Augsburgo não descarta a importância de boas obras, como vimos. Mas Melâncton afirma que os adversários da proposta “rejeitam com teimosia ambas as asserções” de que a remissão dos pecados não se dá por mérito dos homens, e de que é necessária a fé em Cristo. Em seguida, Melâncton desenvolve diversas páginas comprovações de que apenas a fé justifica, ignorando o fato de que a Confutatio concorda com isso; e segue acusando os adversários de discordar dessa perspectiva sobre a importância da fé, ignorando que a Confutatio se baseou sobre as Sagradas Escrituras para mencionar a importância das obras. Melâncton considera que todo o mérito das boas obras é divino, e que são determinadas por comando de Deus, não fazendo sentido algum mencionar que faça diferença alguma iniciativa humana em boas obras para o propósito da salvação. Contudo não é tanto isso que afirma a Confissão de Fé de Augsburgo, quando reconhece a importância das boas obras.
Seguem também muitas acusações contra os adversários, e sobre o fardo que bispos acrescentam ao povo; com isso Melâncton faz uma defesa do povo como vítima de abusos da Igreja, como se o povo fosse inerentemente bom, e como se já estivesse salvo. Mistura também a conduta de gentios, como Caio César e Pompeu, analisa que certas condutas e imposições levaram à guerra civil. Defende filósofos, epieicheia, leniência, relevar pecados, para manter a harmonia pública, alegando que Cristo justifica tudo naqueles que têm fé. Melâncton não adentra a essência de Cristo, nem Suas obras, revisa todo o cânon bíblico em busca dos trechos que confirmam a fé em Cristo seria suficiente para a salvação. De um certo modo, esvazia o significado das palavras Cristo e fé, como se bastassem por si mesmas, e não servissem para representar um caminho a ser percorrido, nem trabalho a ser feito. Há um longo sermão sobre a importância da fé em diversos artigos, coisa à qual a Confutatio afirmou não se opor.
No artigo 11, Melâncton faz também substanciosa crítica à enumeração dos pecados. No entanto a Confutatio sequer menciona enumeração. Menciona ser necessário perscrutar a consciência diligentemente. Não adentra o detalhe sobre necessidade de enumerar pecados durante a confissão, o que parece estranho à prática católica. Apenas se entra no confessionário depois de saber qual pecado deve confessar-se.
A Confutatio dispensa maior discordância à segunda parte do artigo 12, sobre o arrependimento, trazendo abundantes citações do cânon, da tradição dos Apóstolos e decisão do Papa Leão X asseverando que a satisfação é uma terceira parte do Sacramento da confissão, após contrição e arrependimento, que não pode ser suprimida. A satisfação seria apresentar frutos, a compensação pelo pecado do qual se arrepende, depois da contrição e do arrependimento.
Então abruptamente a apologia de Melâncton sai por completo do domínio da discussão teológica e da análise do cânon bíblico e passa a se dirigir, com elogios, ao Imperador Carlos V, implorando pela remissão dos pecados, perguntando se Deus não concederá a remissão dos pecados ao seu povo. Uma interpelação bastante estranha, senão retórica, já que um poder temporal em tese não teria jurisdição para intermediar questões teológicas, conforme propõe o próprio Lutero, na separação entre Estado e Igreja, como se pudesse arbitrar a questão. Em resposta, Melâncton prossegue afirmando que haveria muita confusão e desacordo entre os teólogos da Igreja sobre a doutrina relacionada ao arrependimento, e que essa seria uma matéria nebulosa demais para se asseverar certezas: ressalta haver discussões confusas e que as pessoas se veriam com as consciências aterrorizadas após a remissão dos pecados, temerosas da punição eterna, por causa da aplicação do sacramento da confissão conforme ensinava a Igreja. Ele defende então que a simplificação do arrependimento em apenas duas etapas, contrição e fé, serviria para evitar o labirinto de “confusão dos sofistas”. De fato, o problema parece um falso problema: o excesso da regulamentação da confissão em categorias analíticas não deixa de ser uma deterioração do Evangelho e da sua abordagem íntegra, personalizada, de concessão incondicional do perdão para cada sujeito que busca o perdão.
Parece díficil, contudo, aceitar que uma contrição e arrependimento possam ser válidos se não vierem a produzir nenhum efeito concreto, contrário ao pecado que se tem por redimido. Parece uma conversão muito fácil e cômoda, do pecado à santidade, apenas ter os pecados perdoados, sem precisar fazer nada para compensar o erro. No Evangelho poderíamos encontrar respaldo a não cobrar nenhuma compensação para redenção no exemplo de Zaqueu: a oferta de compensação, ao se saber perdoado por Cristo, é espontânea. Melâncton também recorda a passagem bíblica do Evangelho que vem em seu auxílio, para apoiar algo que a Igreja contesta: quando Cristo perdoa a adúltera, a única prescrição que lhe faz é não pecar novamente, sem necessidade de maiores satisfações, haja visto que já havia sofrido muitos percalços, no juízo público.
No entanto, fica claro que a gratidão que um discípulo sente em ser perdoado vai muito além dessa instrução de não pecar novamente. Em sendo perdoados, passam a seguir Cristo. Veja-se Cristo elogiando a mulher pecadora, a quem muito foi perdoado, por lavar seus pés com perfume, usando seus cabelos, pouco antes de sua Paixão, e criticando os mestres da lei que, tendo sido por Ele perdoados em seus menores pecados, nada de especial lhe oferecem. Mesmo assim, este exemplo favoreceria Melâncton: Cristo não exige à mulher pecadora o perfume caro, é algo que ela oferece voluntariamente, para demonstrar a Ele a sua satisfação.
Neste sentido, a crítica de Melâncton parece válida para melhorar a prática da Igreja, pois ele cogita o seguinte: se a consciência de uma pessoa foi pacificada com a certeza da remissão de seus pecados, e se já não peca mais, por que ficar dispondo mais exigências para atender a Lei? Neste ponto o luteranismo parece batalhar firmemente pela gratuidade do amor divino, em não onerar com penitências infindáveis o fiel que teve o pecado redimido, algo que se aproxima da prática que encontramos na Igreja dos tempos de hoje, pós-conciliares. O próprio Papa Francisco, durante audiência em 24 de outubro de 2024 com os membros do Colégio dos Penitencieiros Menores Vaticanos Ordinários, por ocasião dos 250 de serviço dos frades menores conventuais na Basílica Vaticana, cobrou aos sacerdotes algo na mesma linha do que Lutero sugeriu em 1530:
“Ouvir, não tanto perguntar, não ser psiquiatra, por favor, escutar, escutar sempre, com mansidão. E quando você vir que tem um penitente que começa a ter um pouco de dificuldade porque se envergonha: não entendi nada, mas compreendi, e o Senhor entendeu. Isso é o importante, isso foi o que me ensinou um grande cardeal penitencieiro: entendi, e o Senhor entendeu. Mas por favor, não ser psiquiatra, Quanto menos falar, melhor. Ouça, console e perdoe. Você está ali para perdoar”. (Papa Francisco, Audiência de 24 de outubro de 2024)
Então se a Igreja tem convergido na sua prática com o que Lutero pregava, por que discordar?
Em parte é verdade, parece se abordar o tema de um modo contraditório: porque ao mesmo tempo que argumenta sobre o foco de que a fé do indivíduo seria suficiente para justificar todo o processo de arrependimento, confissão e perdão, Melâncton entra em uma argumentação teológica muito detalhada para embasar essa convicção. Fato é que nenhum argumento técnico, de natureza bíblica, filosófica ou teológica poderia ser suficiente para contraditar a convicção do movimento luterano de que a fé é condição suficiente e bastante, por causa da fé que os luteranos têm na fé, sendo a fé algo que extrapola argumentação. Se os seguidores de Lutero têm fé de que a fé é suficiente, não conseguem enxergar outra possibilidade, e talvez por isso não tomem a Carta de São Tiago como um cânon que exige para uma fé viva boas obras.
Sobre os Santos, a Confutatio traz a abundante evidência do cânon bíblico em favor da constante intercessão dos Santos e dos anjos sobre os afazeres humanos. E ainda recorda que
“Se alguém me servir, meu Pai o honrará”, João 12:26. Se, portanto, Deus honra os santos, por que nós, homens insignificantes, não os honramos? (Confutatio, Do artigo XXI)
Neste artigo, Melâncton começa fazendo uma boa defesa da Confissão de Fé de Augsburgo, recordando que não se defende deixar de honrar os Santos. Ele recorda as palavras de Cristo de que seus Apóstolos e discípulos devem invocar ao Pai e a Ele próprio, afirmando que
“Aqui os adversários primeiro nos convidam a invocar os santos, embora eles não mencionem a promessa de Deus, nem uma ordem, nem um exemplo das Escrituras. E, no entanto, eles fazem conceber maior confiança na misericórdia dos santos do que na de Cristo, embora Cristo nos tenha ordenado a ir a Ele e não aos santos.”
De fato, nada há no Catecismo ou na doutrina da Igreja indicando que não se deve preferir recorrer diretamente a Nosso Senhor Jesus Cristo, ou a Deus. Também não existe nenhuma instrução na doutrina da Igreja Católica que se devesse ter maior confiança na misericórdia dos santos do que na de Cristo, ou de Deus. Talvez Melâncton se referisse às práticas: pois critica que a vida dos Santos seja invocada frequentemente sem o acompanhamento das Sagradas Escrituras ou da Palavra de Cristo.
Contudo, os próprios Santos recomendam ir a Cristo. Portanto, não parece haver uma incompatibilidade necessária entre o que propõe inicialmente o luteranismo e o catolicismo. No entanto, Melâncton insiste no contrário. É certamente por humildade demasiada, temerosa em presumir possível alcançar o ouvido de Cristo, e por encontrar semelhanças entre a experiência de si próprio, que os fieis invocam pelos favores de intercessão dos Santos junto a Cristo. Confiando também que os Santos não desprezarão o pedido, os fieis fortalecem e se incentivam mutuamente a prosseguir no caminho de Cristo; e seria conveniente considerar que o objetivo da Igreja é que haja ainda mais pessoas reconhecidas como Santos. Assim, muitos Santos tiveram especial devoção por Maria, tida a primeira dentre eles, e se chegaram a ser Santos, como aqueles que Lutero admira, manifestaram gratidão pelas intercessões e graças obtidas por meio dela, de se voltar para Cristo. Como desprezar o respeito e invocação que Santo Agostinho faz a Maria? Do repositório da Igreja, temos que este Santo afirma: “As orações de Maria Santíssima junto a Deus têm mais poder junto da Majestade Divina que as preces e intercessão de todos os anjos e Santos do Céu e da Terra.” Por que o Luteranismo toma de Santo Agostinho, então, certos conceitos e perspectivas como necessários para restabelecer uma suposta tradição, mas se descarta o que ele dispõs sobre os méritos de Nossa Senhora? Nisto os luteranos estão, a bem da verdade, querendo ser inovadores, e não restabelecedores das práticas da Igreja em suas origens.
A defesa de Melâncton prossegue nesta mesma direção, e não é nosso objetivo esgotar cada uma das partes em que o seguidor de Lutero busca confrontar a Confutatio - até mesmo porque, ao que tudo indica, oficialmente a Igreja permaneceu tendo como referência, ao menos para efeito teologico, a posição estabelecida pela Exsurge Domine; talvez alterada pela Nostra Aetate, pois não se poderia oferecer ao luteranismo um tratamento pior que às religiões não-cristãs, respeitadas e acolhidas por meio do diálogo ecumênico.
Fica então a dúvida: Lutero dirigia Melâncton para aprofundar, na Confutatio, as diferenças, ao invés de superar e esclarecer os pontos divergentes? Havia um intuito de proteger-se e proteger suas comunidades, amparando-se sob uma autoridade temporal construída com seu apoio? Ou Lutero mantinha suas convicções teológicas independentes do que vinham a produzir os seus colegas e colaboradores? E inicialmente Lutero tinha como propósito a divisão da Igreja e o estabelecimento de uma seita própria, ou sua reação vinha mesmo para enfrentar abusos de uma Igreja que, incorporada à cultura beligerante dos povos europeus medievais, não se renovava?
De um modo geral, o que se vê no texto de Melâncton é uma discussão aprofundada, bastante técnica e detalhada de preceitos teológicos, com diversos floreios em latim, demonstrando domínio da própria forma de pensar que estava em voga naquele tempo no âmbito teológico, na Igreja. A impressão que deixa, portanto, é de ter caído na armadilha da maldição do Papa Leão X aos hereges, transformando o que é uma mensagem simples, sobre a vida de um Homem, acessível a qualquer pessoa, sobre o amor, a remissão dos pecados e a salvação, em um debate complexo de natureza filosófica, transformando e codificando o Evangelho em um sistema de ideias. Isso é coisa que os teólogos da Igreja faziam e não raro ainda fazem, apegados à necessidade de estar mais corretos do que os demais, excluindo assim outras perspectivas, mesmo aquelas amparadas nos textos sagrados, quando não se submetem a uma configuração doutrinária de ideias fixas. O problema desses sistemas de pensamento que Jesus Cristo vinha para combater é que descartam as leituras possíveis, capazes de manter a integridade da unidade da Igreja, de produzir a concórdia e de aproximar o ser humano de Deus. Tanto é assim que, em sua maior parte, as observações de Melâncton são compatíveis com a doutrina da Igreja; mas a despeito disso, ele segue discordando.
Apenas podemos cogitar que o problema da discórdia nos idos anos 1500 não encontra seus principais fundamentos no plano do raciocínio teológico. Óbvio: porque Lutero havia sido condenado à excomunhão sob graves insultos, sem que a Igreja antes refletisse sobre as suas causas de protesto, julgando com base no relato de terceiros e, ao menos nos registros que temos, sem um claro procedimento de defesa que respeitasse a sua dignidade de filho e sacerdote partícipe da Igreja. Melâncton e seus seguidores surgem, portanto, querendo defendê-lo do que lhes parece uma injustiça.
Considerações finais
O fato é que as 95 teses de Lutero mereceram uma bula papal rigorosíssima e insultos do Papa Leão X a Lutero; mas a Confissão de Augsburgo não resultou em um movimento contrário, de força semelhante. E hoje temos, como vimos em citação, que boa parte das posições adotadas na Confissão de Augsburgo encontra respaldo nas práticas e documentos mais recentes da Igreja Católica – ou ao menos não entram em conflito tão fundamental contra o núcleo da fé católica.
Resta analisar a possibilidade de alguém que proclama ter fé na própria salvação, mas produz más obras. Lutero não cogita isso seja possível. A fé, então, não poderia ser verdadeira? Ou não existiriam más obras por parte daqueles que têm fé? Sem entrar na análise do mérito das obras, se produziram bom ou mau fruto, parece impossível chegar a qualquer conclusão sobre a fé como princípio suficiente para a salvação.
A Igreja Católica segue crendo que uma fé verdadeira deve ser acompanhada de boas obras, mas o mérito das obras sempre foi objeto de apreciação por meio do Espírito Santo, e não por meio de uma avaliação humana, do clero, do papa, ou do povo leigo na Igreja. O pensamento isolado da fé luterana em que apenas a fé basta não se faria inicialmente compatível; mas a fé católica completa, sobre a impossibilidade de conhecer o real valor das obras, senão por favor do Espírito, parece que sim. E dentro da Confissão de Fé de Augsburgo encontramos elementos que poderiam ser desdobrados para uma desejável convergência, por meio do maior respeito que se tem hoje da parte do Papa àqueles sacerdotes de mais baixa hierarquia e também por meio do amadurecimento para tratar de aspectos teológicos.
Hoje se têm como duas comunidades completamente separadas, a Igreja Católica e a Igreja Luterana, o que se estende às denominações e clivagens que posteriormente surgiram do movimento protestante. Mas seria possível conciliar hoje o luteranismo com a Igreja Católica, percebendo os erros que conduziram à cisão entre os protestantes e à Igreja Romana, naquela época? É a dúvida – espero boa – que hoje semeio entre os meus leitores.
Recorde-se que o Papa Francisco ponderou com bons olhos o luteranismo em 2016. Os canais da Igreja prontamente acorrem a desdizer o que o Papa Francisco disse com alguma frequência, acusando os meios de comunicação de supostamente distorcer suas palavras. Mas relendo a mensagem completa divulgada, é isso mesmo que ele disse, o que neste texto provei, palavras favoráveis ao luteranismo e sobre sua compatibilidade com a fé católica:
“Durante a coletiva de imprensa na viagem da Armênia para Roma, o Papa Francisco respondeu a uma pergunta sobre a possibilidade de levantar a excomunhão a Martinho Lutero, por ocasião da próxima viagem do Santo Padre à Suécia pelos 500 anos da Reforma protestante. As palavras do Santo Padre foram manipuladas por alguns meios de comunicação. Confira a seguir a resposta completa do Papa Francisco na coletiva de imprensa do domingo, 26 de junho: “Creio que as intenções de Martinho Lutero não estivessem erradas: era um reformador. Talvez alguns métodos não fossem certos, mas naquele tempo, se lermos a história do Pastor, por exemplo, um alemão luterano que depois se converteu quando viu a realidade daquele tempo e se tomou católico. Nesse então, a Igreja não era propriamente um modelo a imitar: havia corrupção na Igreja, havia mundanidade, havia apego ao dinheiro e ao poder. E por isso ele protestou. Ele era inteligente e deu um passo avante justificando o porquê fazia isso. E hoje luteranos e católicos, protestantes e todos, estamos de acordo sobre a doutrina da justificação: sobre este ponto tão importante ele não errou. Mas ele proporcionou um remédio para a Igreja, depois este remédio se consolidou em um estado de coisas, numa disciplina, num modo de acreditar, num modo de fazer, de modo litúrgico. Mas não era só ele: havia Zwingli, havia Calvino e quem estava atrás deles? Os princípios, ‘cuius regio eius religio’. Devemos nos inserir na história daquele tempo: é uma história difícil de entender. Não é fácil. Depois as coisas prosseguiram. Hoje, o diálogo é muito bom e aquele documento sobre a justificação acredito que seja um dos documentos ecumênicos mais ricos, mais ricos e mais profundos, existem divisões, mas dependem também das Igrejas. Em Buenos Aires, havia duas igrejas luteranas: uma pensava de um modo e a outra de outro modo, mesmo na própria Igreja luterana não há unidade. Mas se respeitam, se amam, a diversidade é aquilo que talvez nos tenha feito tanto mal a todos e hoje buscamos retomar o caminho para nos encontrar depois de 500 anos. Eu acredito que devemos rezar juntos: rezar! Por isso a oração é importante.” (https://www.acidigital.com/noticia/31541/o-que-o-papa-francisco-disse-sobre-lutero-e-a-corrupcao-na-igreja?) .
Se observamos o movimento luterano dentro do contexto histórico, constataremos que na era medieval e nos séculos que se seguiram, o ‘cuius regio eius religio’ se aplicava também aos imperadores e reis vassalos do papa, quando não existia ainda uma separação entre Igreja e Estado. Portanto, a crítica que se faz hoje ao luteranismo, de submeter a fé ao que estipulam os principados terrenos, não deixa de se aplicar também à Igreja Romana naquele tempo. Em 1955, veio a Dieta de Augsburgo, confirmando a regra de que cada reinado tinha direito a escolher a religião antiga ou as novas formas de cristianismo, e em 1661 Joachim Stephani (1544–1623) consagra a Dieta de Augsburgo de 1555 por meio do princípio ‘cuius regio eius religio’, excetuando-se os cavaleiros (Declaratio Ferdinandei, de 1555) e o clero e os territórios eclesiásticos (Reservatum ecclesiasticum, de 1555), concendendo a liberdade de religião dentro dos territórios protestantes apenas àquelas categorias de posição social mais elevada. Mas o Papa Francisco recorda que “Depois as coisas prosseguiram”. Cresceu, depois da Revolução Francesa e da Declaração da Independência norte-americana, a perspectiva de dignidade de todo homem, o estatuto jurídico mais igualitário. Neste tempo o Papa Francisco assinala que “Hoje, o diálogo é muito bom”; que, a despeito das diferenças, “se respeitam e se amam”.
Para quem julga impossível do ponto de vista teológico implementar essa reunião instintiva, ou supõe que a proposta de reincoroporar Lutero ao rol de sacerdotes da Igreja seja ingênua e inadequada, eu devo então recordar quem tem maiores prerrogativas e precedência sobre o Papa Leão X, sobre os demais teólogos da Igreja e sobre eu mesma: a doutora da Igreja, Santa Teresinha de Lisieux. Não fica bem um papa invocar todos os Santos e que a Igreja, herdando seu legado, não venha a ouvir essa Santa, para insistir no erro da discórdia, quando se defende algo muito parecido ao que defendeu Lutero. Pois é ela quem afirma: “O meu pequeno caminho é o caminho da infância espiritual o caminho da confiança e entrega absoluta”. Não é esse o caminho da confiança e entrega absoluta o caminho da fé bastante? E ainda: “O bom Deus diz a mim: dê sempre sem se preocupar com os resultados”. Nem mesmo nós mesmos devemos avaliar as nossas obras… Em contraste com o Papa Leão X, acusando que os luteranos não temem mais a Deus, ela afirma: “Como eu posso temer um Deus que é todo misericórdia e amor?”. Se bem ela declara que “o amor se prova por meio de feitos”, também conclui que “Jesus não pede grandes feitos: apenas entrega e gratidão”. E por fim: “Eu asseguro a vocês que Deus é muito melhor do que acreditam. Ele se contenta com um olhar, um suspiro de amor”… Então iremos excomungar Santa Teresinha, ou re-comungar Lutero e os seus? Cabe à Igreja hoje esse movimento reconciliatório, pois foi da Igreja Romana daquele tempo que partiu a excomunhão.
*Pseudônimo literário de R. P. Alencar, é cientista política, poeta e diplomata. Foi aluna do Instituto São Boaventura.
Comments