fardo dE primogênito
Eis o PDF. Boa leitura!
Fardo de primogênito – Guimarães e Clarice, os críticos literários de Machado
“Pensar é difícil, é por isso que as pessoas preferem julgar”.
Carl Gustav Jung
Ana Paula Arendt*
Trago aos meus leitores duas críticas que muito me deixaram interessada. Tratam-se de registros das opiniões de Guimarães Rosa e de Clarice Lispector sobre Machado de Assis.
As críticas de Guimarães Rosa a Machado de Assis se encontram em seu ainda inédito "Diários de Hamburgo”. Consiste em um diário que acompanha, enquanto ele se encontrava a serviço na Alemanha, o começo da II Guerra Mundial, quando Guimarães Rosa ainda era um secretário na carreira diplomática. Registrou anotações diversas sobre o período em que conheceu sua segunda esposa, Aracy, também funcionária do consulado brasileiro em Hamburgo (o anjo de Hamburgo, hoje reconhecida pela Yad Vashen por seu mérito em ter concedido passaportes a judeus, do mesmo modo que o Embaixador Souza Dantas, desafiando as instruções de Getúlio Vargas, inicialmente pró-Eixo).
O diário parece um registro histórico sumamente interessante, sobretudo considerando a observação dos fatos que precederam a deterioração da sociedade alemã com o avanço da doutrina nazista. Trata-se da perspectiva brasileira sobre os eventos, e considerando que, no início da carreira, os secretários do Itamaraty buscam homogeneizar-se para progredir nas promoções, é certamente um registro do que pensava o diplomata brasileiro mediano sobre os acontecimentos na Alemanha. Parece-me significativo, especialmente se considerarmos que Getúlio Vargas inicialmente simpatizava com o Eixo, que houvesse uma força de opinião no Serviço Exterior no rumo contrário – peso que certamente deve ter contribuído para a mudança dessa posição política. Interessantemente, Guimarães Rosa foi confinado juntamente com outros diplomatas e artistas pelo reich de Hitler, uma experiência de vida que deve ter sido muito angustiante, mas também muito profícua, do ponto de vista da substância necessária para a criação literária.
“O diário de Hamburgo termina de forma abrupta. Em 28 de janeiro de 1942, o Brasil anuncia o rompimento de relações diplomáticas com os países do Eixo. Dois dias depois, Guimarães Rosa termina suas anotações. Com a mesma caligrafia que permitia um bom espaçamento entre cada uma das palavras anota apenas: “Viemos para Berlin”. A jornada do jovem diplomata na Alemanha não terminaria ainda. Logo em seguida, ele seria confinado pelo governo alemão num hotel na cidade turística de Baden-Baden, ao sul do país, em companhia de colegas como Cyro de Freitas Vale, do artista Cícero Dias e de outros diplomatas sul-americanos. Foi liberado somente cem dias depois, em troca de diplomatas (acusados de espionagem) alemães que estavam presos no Brasil. No verão de 1943, quando Hamburgo sofreu um dos maiores bombardeios da Guerra, a chamada Operação Gomorra, Guimarães Rosa estava bem longe, em Bogotá, servindo como primeiro-secretário na embaixada brasileira.” (Diário Arquivado, Cassiano Elek Machado | Piauí, Edição 3, Dezembro 2006).
Deixando para outra oportunidade os efeitos da guerra sobre a literatura, resgatamos os trechos da análise do jornalista que teve acesso aos Diários de Hamburgo, no que diz respeito às críticas ao trabalho literário de Machado de Assis, assunto que lhes trouxe.
“Ao longo das 208 páginas, o autor narra bombardeios, descreve o barulho das sirenes e diz como o silêncio das noites era recortado por tiros. Conta a primeira vez que viu um judeu com uma estrela amarela costurada na roupa. Relata como uma bomba no Jardim Zoológico de Hamburgo dizimou camelos. Registra o que anunciava uma pequena tabuleta num parque: “Lugar de brinquedo para crianças arianas”. O autor do diário era um jovem diplomata que servia pela primeira vez fora do Brasil, no posto de cônsul-adjunto de Hamburgo. Aos 31 anos, tinha aspirações literárias, mas ainda não havia publicado nada. (…) Em outro ponto, põe no papel um poema que começa com a estrofe “As lagoas são armadilhas armadas para pegar a lua/ porque a lua não se reflete (não desce a) na mata, nem no chão (terra dura)”. Ao lado dos escritos mais pessoais, de invencionices subjetivas, ele acrescenta o sinal M%, que significaria, segundo especialistas na obra de Guimarães Rosa, “meu 100%”. O símbolo aparece, por exemplo, ao lado de um escrito intitulado A Ladeira: “A ladeira da vida inteira… Tudo é vaidade, tudo é besteira, só uma coisa é que é verdadeira: subindo a ladeira, sobe-se a ladeira da vida inteira…”. (…) “M. de. A.” era ele, Machado de Assis. Na anotação que se presume a mais antiga do diário, pois seus escritos nem sempre são datados e ordenados, o jovem Rosa faz outras três observações sobre o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas, a partir da leitura, como admite, “apressada” do romance. Na primeira, afirma que Machado “gosta, usa e abusa da construção terciária: silogística ou hegeliana (premissa maior — premissa menor — conclusão; ou tese — antítese — síntese). A cada passo a gente esbarra com vestígios desse vezo, quando não com a armação completa, a qual pode ser decomposta de várias maneiras: um pulinho para a direita, outro para a esquerda, outro para a frente… quando não para trás”. Os elogios ficam guardados para outro tópico: “De verdadeiramente interessante é no livro: a) o capítulo ‘É minha’, onde o autor descobre a ‘lei da equivalência das janelas’; b) o capítulo ‘O momento oportuno’, onde escreve: ‘Não há amor possível sem a oportunidade dos sujeitos’; c) a filosofia ‘humanitática’ de Quincas Borba.” Ao lado do “humanitática” o autor tasca outro dos seus “M%”. A catimbada fica para o final. Depois de afirmar que não pretende ler mais nada do escritor, “a não ser seus afamados contos” e, talvez, o começo do Dom Casmurro, ele escreve: “Acho-o antipático de estilo, cheio de atitudes para ‘embasbacar o indígena’; lança mão de artifícios baratos, querendo forçar a nota da originalidade; anda sempre no mesmo trote pernóstico, o que torna tediosa a sua leitura”. Rosa não para aí: “Quanto às ideias, nada mais do que uma desoladora dissecação do egoísmo, e, o que é pior, da mais desprezível forma de egoísmo: o egoísmo dos introvertidos inteligentes”. Para terminar, lança um “Bem, basta; chega de Machado de Assis”. No canto direito inferior da página acrescenta a data: “Hamburgo, 15 de agosto de 1939”. Duas semanas depois, Hitler invadiria a Polônia, marco zero da II Guerra Mundial. A diatribe contra Machado de Assis, morto no mesmo 1908 em que Rosa nasceu, acabaria por se revelar um momento raro não só nos diários, mas na vida do escritor, um homem de temperamento contemporizador, pouco dado a sinceridades indelicadas com seus pares. E, no entanto, assim como o conjunto do diário, a crítica jamais foi publicada em livro. (Diário Arquivado, Cassiano Elek Machado | Piauí, Edição 3, Dezembro 2006).
Da leitura sobre a leitura jamais se terá o mesmo trato que a leitura direta do material em si, indisponibilizado por uma das herdeiras de Guimarães Rosa. Teremos de aguardar que cessem os direitos, 70 anos após sua morte, em 2037, para encontrar e transcrever os trechos completos. Não que não confie no jornalista cultural: mas com o valor-notícia repousando naquilo que destoa, muito se perde de juízo sobre o que realmente disse o autor, quando se centra na crítica e nas partes, sem olhar o mérito do todo.
Apenas podemos adivinhar que Guimarães Rosa se interessava em ler o trabalho de um grande mestre da literatura nacional, talvez já contendo alguma ambição de produzir algo que fosse além. Os acontecimentos parecem ter sido muito importantes para tanto: ele estava diante de um momento histórico, certamente relatava algo na série telegráfica, mas estando em um Consulado, não poderia ir muito além nas análises e registros da situação política, tarefa da Embaixada em Berlim. O diário e a busca de referências literárias poderiam estar conectados com a necessidade de registrar o que ele vivia de uma maneira minimamente satisfatória. O impulso literário, por assim dizer, talvez detenha muitos componentes, e não encontrar em Machado os instrumentos literários necessários para registrar o que ele sentia e vivia talvez fosse um combustível importante para que avançasse em seu desejo de escrever algo novo.
Já Clarice tinha 21 anos e ainda estudava no terceiro ano da Faculdade de Direito, quando de um modo quase sobrenatural, foi encontrada por um repórter e solicitada a dar sua opinião sobre literatura. Muito diferente do que se tem veiculado nas redes sociais, ela não trouxe a sua crítica a Machado por iniciativa própria, em uma carta, como se planejasse um projeto literário com brilho próprio, à maneira que suspeitamos em Guimarães Rosa. Quase por acaso, e meio a tantas outras considerações, ela explica por que gosta mais de Graciliano Ramos e de outros autores que pertenciam a seu próprio tempo.
Transcrevo integralmente porque diversas páginas nas redes sociais replicam apenas um trecho de sua entrevista (que dizem carta), como se aos 21 anos fosse Clarice uma escritora megalomaníaca achando-se predestinada a superar Machado. Na realidade, ela elogia o cânon brasileiro, e dá uma opinião dando a conhecer sobre uma matéria de gosto pessoal.
ªNA FACULDADE DE DIREITO
Subimos ao primeiro pavimento do edifício da rua Moncorvo Filho. Descemos novamente e vemos chegar uma jovem a quem abordamos. Chama-se Clarice Lispector e tem traços da raça eslava. É 3ª anista, e acede prontamente em responder às perguntas do repórter.
– Leio de preferência livros, diz Clarice. Quanto à literatura nacional, em minha opinião, temos ótimos escritores, capazes de rivalizar com qualquer outro de qualquer literatura. Sobre a moderna literatura nacional, conheço alguma coisa; mais talvez do que a antiga.
– Pode destacar algum vulto?
– Vários, como Graciliano Ramos, que me parece o maior. Raquel de Queiroz, Frederico Schmidt, etc.
– Na literatura moderna nacional, existe algum escritor, que em sua opinião possa se nivelar a Machado de Assis, ou Euclydes da Cunha?
– Não se pode tomar para comparação um Machado de Assis, tão pessoal na sua obra. Mas em intensidade literária, dentro de seu próprio gênero, há escritores atuais que podem até superá-lo. Aliás, em minha opinião, seria mesmo mais fácil superá-lo do que igualá-lo. Machado tinha muita personalidade. Como romancista, ele não é seguro, não obedece a normas; por isso me parece fácil superá-lo, mais do que igualá-lo. Euclydes da Cunha não me agrada…
– Qual o livro nacional ou estrangeiro que lhe tenha deixado maior impressão?
– Esta é uma pergunta difícil… porque eu sempre passo épocas em que tal ou qual livro me impressiona. Depois o esqueço, e outro toma o seu lugar. Às vezes o que me agrada num livro é o “tom”, a “cor”, o plano em que o autor se move. E se em outro livro o autor muda o “tom”, eu perco o interesse. É um estado d’alma.
– Acha que a guerra possa influir sobre a literatura?
– Pode. Talvez um certo ceticismo se apodere da literatura do após-guerra. Também os motivos humanos ocuparão seu lugar. Mas ao certo, não se pode prever.
– Qual sua opinião sobre a “coleção das moças”?
– Corresponde a uma necessidade da idade. Há uma fase na vida da moça em que tal literatura é indispensável. Mas apesar de eu já ter sofrido esta necessidade, hoje tenho pena das moças que leem exclusivamente esta literatura.
– E sobre a literatura infantil?
– Monteiro Lobato é sozinho, uma literatura neste gênero. Suas obras compõem o que há de melhor a este respeito no Brasil. Além disso, temos Marques Rebello. Ainda não se pode, todavia, confiar em uma literatura infantil, no Brasil.
– E sobre a poesia?
– Eu nunca procurei a poesia. Gostei sempre mais da prosa. Admiro particularmente Augusto Frederico Schmidt.
– Qual o maior poeta nacional, em sua opinião?
– Eu diria Castro Alves, porque sei que é o melhor. Mas não tenho apreciação pelos condoreiros. Se a pergunta se refere aos que gosto, posso falar de Augusto F. Schmidt, com o seu “Cântico do Adolescente”, que muito me impressionou há anos atrás.
– Quais os melhores livros da literatura universal, na sua opinião?
– “Humilhados e ofendidos”, “Crime e Castigo”, de Dostoyewsky, “Sem olhos em Gaza”, de Huxley, “Mediterrâneo”, de Parait Istrati e as obras de Anatole France em geral. Mas isto é só dos que já li.
Depois, a própria Clarice se encarrega de nos apresentar a um colega. Augusto Baêna, 4º anista, é presidente do Centro Cândido de Figueiredo, da Faculdade de Direito. Fala com muita intimidade e desembaraço:
– Eu sou um crente na literatura nacional. Não por estreito espírito de nacionalismo, mas sinceramente. Na verdade não me detive como de justiça, na moderna literatura nacional. Aprecio especialmente Érico Veríssimo.
– Acredita que haja algum escritor capaz de se nivelar com Machado ou Euclydes?
– Fico ainda com Érico; há tipos de Érico, que podem se comparar a Machado e até sobrepujá-lo. Quanto a Euclydes, não creio que haja alguém que com ele se iguale.
– Qual livro que lhe causou maior impressão em sua vida?
– “Os Maias”, de Eça.
– Acha que a guerra possa influir sobre a literatura?
– Sem dúvida. A guerra é um fator social e tem que influir na literatura que é um reflexo da vida social. A literatura apesar de tudo mantém uma linha mestra indestrutível, que nem a guerra poderá modificar.
– E sobre a poesia nacional?
– Na minha opinião, Castro Alves é o Camões nacional.
– Augusto, agora eu quero que você me cite as cinco maiores obras da literatura universal.
O nosso entrevistado medita e depois responde:
– Pois bem, falarei de um modo geral: em primeiro lugar as obras de Homero: “Ilíada” e “Odisseia”; depois, “ A Divina Comédia”, de Dante; terceiro, as “poesias” de Byron; quarto, Flaubert com a “Madame Bovary”- e finalmente as obras de Eça de Queiroz.
(Jornal Diretrizes, p. 20, 30/10/1941, disponível em https://memoria.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=163880&pagfis=3167 ).
Curiosamente, e por oportuno, a entrevista revela um pouco do Brasil como ele persiste em ser. Clarice recusa a poesia, talvez influenciada pela literatura americana, que raras exceções, rejeita a forma poética e prefere centrar a atenção pública sobre as obras de prosa. O repórter deveria, de todo modo, ter se deslumbrado com respostas tão avançadas para uma aluna de Direito. No entanto, apesar de em muito contrastarem com os demais alunos entrevistados, o repórter prefere distribuir elogios ao aluno de sobrenome mais famoso, em cargo de liderança na Faculdade, cheio de certezas nas suas respostas, o qual a seu ver “fala com muita intimidade e desembaraço”. O que se vê em seguida, a propósito, é o aluno esvaziando a ambição de ter uma opinião própria (que ele próprio confessa não ter, por não ler os autores modernos) para replicar em sua opinião os livros cuja leitura era mandatória para o vestibular, sem explicar o que havia de especial neles. Responde o que se espera ouvir e do que já se sabe. O jornalista parece aliviado em ter encontrado alguém para responder confirmando o que ele espera, ao invés de semear dúvidas em seu pensamento.
É interessante, porque no Brasil essa cultura escolar ainda prevalece em diversos contextos sociais: como se a vida fosse feita de um gabarito de respostas certas, e como se só pudessem avançar na sociedade aqueles que tivessem sido treinados para dar respostas tidas como certas, ou que tivessem um acesso privilegiado às respostas certas desse gabarito invisível. A simplificação da realidade vai resultando então, na inércia, no analfabetismo em muitas matérias substantivas, que demandam sensibilidade, na falta de patentes na ciência, na punição à criatividade pela sua identificação com um elemento raro, estrangeiro, estranho. Sobre isto, creio, já discorri algo no texto sobre Einstein e o Brasil.
Mas este texto é sobre a crítica literária, e devemos retornar então à opinião de Guimarães Rosa e Clarice Lispector sobre Machado. Certo, Machado não deixa de pertencer a um lugar histórico específico, por mais que ele tivesse superado as próprias circunstâncias por meio da escrita, dando a conhecer as meias-demências de uma sociedade muito fixada nas suas pretensões, como bem sintetizou Benjamin Moser, no seu artigo da New Yorker sobre o autor brasileiro. Mas Clarice e Guimarães parecem ter analisado Machado estritamente sob o ponto de vista do estilo literário. Ora, a obra do Bruxo do Cosme Velho não se encerra numa questão de estilo, narrativa ou assunto. É toda uma construção para zombar das características que a sociedade do século XIX tanto valorizava, e essa zombaria é que nos trouxe a um melhor momento, a um lugar menos estamental nos seus valores, a uma maior flexibilidade e liberdade na maneira de pensar. Machado de Assis nos liberta. E ele não escreve dessa maneira para diminuir o valor nacional… Por vezes tive a impressão de que ele gosta de dar um sabor especial à observação inteligente das coisas. Isso passaria muito longe de ser “antipático de estilo”, ou de escrever para “embasbacar indígenas”. Não se deveria confundir o sabor do objeto da atenção do escritor com a escrita do escritor.
“Para embasbacar o indígena”… Não, não estou com raiva de Guimarães Rosa. Ele pode ter a opinião dele, até mesmo tomando Machado de Assis como um arrogante imprestável, e perfeitamente marcar as teofanias nas quais acha escreveu o máximo. É um direito dele. Mas faria bem a ele, tratar assim um colega? E será por esta opinião que adiou tantas vezes a posse na Academia, por ter em tão baixa conta um de seus fundadores? Leio que a pesquisadora Ana Luiza Martins Costa afirma que em um diário similar escrito em Paris, Guimarães Rosa “fala sobre a ansiedade de escrever, sobre a questão da onisciência, sobre a necessidade de fixar coisas no papel”. Questão da onisciência? Eu tendo a duvidar que Guimarães Rosa tivesse lançado anotações de desprezo a Machado tais e quais, ou que ponderasse em Paris ter de lidar com o problema de ter alcançado a onisciência. O relato jornalístico, com valor-notícia, feito de trechos suscitados, não me parece encerrar de todo o que Guimarães Rosa realmente pensava a respeito da obra de Machado, ou sobre o estilo desejável para uma boa obra. Por mais eu não negue haja muitos diplomatas cujas mentes, de tão escrupulosas, vão parar no beleléu, especialmente quando se julgam no topo… Via de regra toda conduta de um colega segue um longo fio de um raciocínio cuidadoso, num padrão rendado, delicado, muito temeroso de desagradar quem é amplamente reconhecido, ou mesmo a sua memória.
De todo modo, o comentário de Guimarães Rosa não fere porque sabemos que Machado não é alguém dado a reproduzir uma prerrogativa de superioridade, nem anti-nacionalista. Ao fundar a Academia Brasileira de Letras, manifestou admiração por José de Alencar, ao que tudo indica, seu autor favorito, escolhendo-o como patrono de sua cadeira. Um autor que se dedicou a valorizar o elemento indígena, entendendo o termo por aquilo que pertence à própria terra, dos romances simples.
Então o leitor suspeitará de meu nepotismo, porque eu viria a defender Machado de Assis por uma espécie de tributo a quem fez tributo a meu hexatio… E fico ao mesmo tempo meditando que Clarice Lispector nem mencionou José de Alencar, patrono da literatura brasileira, em sua lista de autores que julgava dignos de menção, e tampouco o segundo aluno de Direito consultado pelo jornalista, seu amigo. Guimarães Rosa também foi buscar referência de escrita primeiramente em Machado, não em José de Alencar, seu patrono.
Mas Machado não contornou José de Alencar nem o seu esforço para criar uma literatura nacional, com identidade e características próprias. Nisto já vejo um grande mérito, não porque o escritor fosse meu parente distante, nem porque sua ausência na Corte tivesse desencadeado mudanças políticas, depois de ter sido hostilizado por Dom Pedro II como um “mal-educado” (vide relato guardado por Seu J. B. Serra e Gurgel, jornalista da rádio Ceará em Brasília, pai de Embaixadora Ivana). O pai de José de Alencar, Senador José Martiniano de Alencar, foi um árduo defensor da maioridade, um legado transmitido a seu filho, que depois se tornaria o patrono da literatura brasileira. Mas rememoro isto para indagar se não teria sido então a escolha da homenagem para José de Alencar, a despeito da sua exclusão da Corte carioca, por Machado de Assis, então, um dos seus atos de justiça?
Da admissão de José do Patrocínio, Joaquim Nabuco, o qual elogiou a declaração da Confederação do Equador, presidida por Tristão de Alencar, tio de José de Alencar, como um dos mais belos textos já escritos, e de Ruy Barbosa, muito ambicioso em ser presidente, talvez se pudesse suspeitar que a Academia fosse uma parada de discretos republicanos aguardando os acontecimentos. Considero que fosse ato de justiça ou não, um gesto político ou não, o respeito de Machado de Assis por José de Alencar tem grande mérito: valorizar os cenários brasileiros. Inclusive aqueles cenários urbanos configurados sobre idiossincrasias: são um maravilhoso, épico começo para nossa literatura.
Neste ponto, não posso deixar de pensar que, apesar das críticas, a leitura de Machado teve algum efeito positivo sobre Guimarães Rosa, pois se vê que, ao coletar em correspondência com seu pai sobre anedotas locais que iam parar no armazém do Sr. Florduardo Pinto Rosa, ele estava construindo sua obra também num cenário que não poderia ser transplantado para outros contextos, sem que fossem destilados os seus aspectos universais. Também parece muito difícil crer que Clarice Lispector não tivesse sido influenciada pela leitura de Machado de Assis, pois este é um grande mestre da narrativa íntima, do recurso ao fluxo de consciência.
Será então um problema freudiano, de querer destruir o totem ou mito paterno, o que nos precede para configurar o novo, essas críticas de dois escritores modernos a Machado? Serei eu então uma poeta patriarcal, conformista, propensa a manter no altar quem já esteja colocado nele? Machado merece um desconto, a meu ver, porque se tornou leitura obrigatória: e toda obra de arte cuja apreciação se torna mandatória produz um certo descaso, um certo ranço de suspeita na juventude.
Eu talvez tenha tido sorte, porque apesar de ter sido obrigada a lê-lo, gosto sumamente de Machado, embora não mais do que José de Alencar e Visconde d’Escragnolle Taunay. Gostava antes da facilidade com que vencia os romances de José de Alencar. E me deixando guiar pelas mãos do escritor e artista nobre de coração, Inocência me fez chorar copiosamente. Mas gosto de Machado de Assis porque eu o acho uma excelente companhia. Difícil pensar que poderia me manter sã, vendo tantas picuinhas que ainda marcam as convenções incongruentes da vida social de uma pretensa elite, sem a acidez dos livros dele, o que nos ajuda a digerir o dia-a-dia.
Mas notem que a minha perspectiva é muito diferente da perspectiva de Guimarães Rosa e de Clarice Lispector: talvez os dois fossem pessoas mais badaladas pelos colegas como mestres fadados ao sucesso e à imortalidade dos grandes escritores. Por mais tenham chegado a nós a certa informação de que eles tampouco escaparam da maledicência, eram lidos e admirados em alguma medida. De Guimarães Rosa, recolho que pesava sobre ele também fofocas, de que teria negado visto a uma bela judia que lhe recusou a cantada, durante sua estadia em Hamburgo (do acervo de Prof. Kathrin Rosenfield, em “Diário Arquivado”, de Cassiano Elek Machado | Piauí, Edição 3, Dezembro 2006). E de Clarice Lispector, vimos que a audácia das fofoqueiras chegou até mesmo aos jornais, em uma carta maliciosa, possivelmente de uma esposa de diplomata, indagando se a escritora havia entrado em depressão por seu marido ter se casado novamente. Por oportuno, cito o trecho do garimpo da Professora Vera Lucia Dias Lopes, em seu post no Facebook de 23/07/2024:
“Essas pessoas, que hoje são chamadas de "haters" nas redes sociais , sempre existiram e só tiveram sua ação facilitada em tempos de internet. Leiam aqui como Clarice respondeu a uma "leitora anônima" em sua coluna no Jornal do Brasil, em junho de 1968.
Essas colunas com "respostas para leitores" ficaram de fora do recente Todas as Crônicas, que reúne a produção da Clarice cronista lançado pela editora Rocco, o que é uma pena. Abaixo a maravilha de resposta de Clarice Lispector para F.N.M:
"F.N.M., você é uma raposa astuciosa, mas deixou o rabo aparecer mesmo para uma pessoa distraída como eu. Suas iniciais devem ser falsas também, acredito que você seja mulher de diplomata, pelo número de diplomatas que você cita. Você toma um ar de falsa piedade e me diz que soube que a depressão em que andei foi causada pelo casamento de meu ex-marido. Guarde, minha senhora, a piedade para si própria, que não tem o que fazer. E se quer a verdade, coisa pela qual a senhora não esperava, ei-la: quando me separei de meu marido, ele esperou pela minha volta mais de sete anos. Quando ele se casou, e bem casado, foi um alívio para mim, se é que a senhora compreende essas coisas: foi um alívio e uma alegria porque eu o sabia bem acompanhado e não mais sozinho e, portanto, eu não me sentia mais culpada. Continuo amiga da família de meu ex-marido, falo com ele e com sua nova esposa muito cordialmente. Perdoe, madame F.N.M., eu destruir o romance que a senhora construiu. Mas eu lhe dou o material para a senhora inventar outro: realmente passei por um período de depressão e, não só não me interessa contar-lhe o motivo, como não quero. Está bem, meu benzinho?” (Vera Lúcia Dias Lopes, https://www.facebook.com/veruska.guerra.5602/videos/3802271143375176 ).
De modo que tendo a pensar que tanto Guimarães Rosa quanto Clarice Lispector davam mostras de não apenas ser muito versados no sistema social e político, nas circunstâncias em que viviam, como também souberam aproveitar o melhor do que encontraram nelas. Fato é que ninguém é promovido até o cargo máximo na carreira diplomática sem ter feito uma intensa campanha e articulação interna junto a seus pares, seja por conta própria, ou por meio de contatos e das pessoas com parentesco – algo não raro. Podemos concluir, com algum grau de certeza, portanto, que Guimarães Rosa era querido e respeitado por seus pares, e que em alguma medida transitava valendo-se dos valores que organizam esse sistema político e social.
Também Clarice Lispector nos traz uma deixa parecida em A Paixão segundo G. H., já que sempre observamos em alguma medida sua personalidade e experiência nos seus escritos. A protagonista relata ser uma pessoa entre um homem e uma mulher, não apenas mulher, pelo estatuto que conferia seu reconhecimento profissional. Clarice era uma escritora publicada nos principais jornais e premiada pela crítica. Sou contra inferir da personalidade de uma personagem a personalidade da autora, mas ao menos disso se. pode deduzir que a autora sabia muito bem como funcionava o sistema social e político no qual se encontrava, para tê-lo descrito em sua obra. Seria, então, a assimilação de certas características e valores da sociedade de seu tempo algo incompatível com a inconformidade de Machado, sempre dado às ironias?
Já minha perspectiva sobre o que escreveu Machado vem de outro lugar. Eu sou do Norte, portanto sempre cansada daquele olhar do sudeste ora benevolente, ora muito pouco ciente sobre o restante do País, que nada sabe sobre o peso político da legitimidade, dos laços históricos que unem cada pessoa à coletividade. Cresci nos bairros distantes do centro e das zonas nobres das cidades. Quanto eu ouvia, frequentando os mesmos lugares da classe alta, comentários desnecessários! No fundo, as pessoas que abominam as regiões menos valorizadas querem aumentar o próprio valor; logo, não estão convencidas do valor de si mesmas; e esse tipo de comportamento retém a evolução, o desenvolvimento de uma maior presença de espírito. Inconscientes da projeção que mesmo o indivíduo no lugar mais ermo é capaz de produzir nos acontencimentos, vi esses cegos guiando cegos, como no romance de Saramago.
Além dessa origem mais prosaica, há o que eu resolvi carregar comigo na minha vida privativa: meu nome tal como foi dado. Quando é soletrado em seu encontro triconsonantal de uma origem supostamente humilde, causa aquele certo sabor de desprezo, como se tivesse sido mal feito só para despertar algum constrangimento. Depois as pessoas se surpreendem, com elogios ao meu nível cultural, e colho bons frutos da humildade. Mas fica aquela marca que deixou minha mãe, de não aceitar elogios, para não se corromper. Seria um descrédito para a gente humilde, adentrar um sistema que se diz meritocrático, mas que exige uma parafernalha de relações sociais, exibições de poder, gozo de coerção, promessas e dívidas intrincadas, para fabricar o mérito. Se você acha que fez um bom trabalho, deve claro mostrá-lo, mas fazê-lo sem esperar o reconhecimento; que dirá então se empenhar pelo reconhecimento. Na região Norte, é como no Iowa, se você precisa dizer que é inteligente – é porque não é…. Quem fala muito do próprio mérito é dito um abestado, um exibido, e releio este texto para ver se não falei demasiado, além do ponto de contextualizar por que penso de um modo diferente.
Penso que se bem conheço algo do sistema social e político que temos – e que se mantém por tanto tempo… Considero ter feito devidos registros de passos concretos para provar a consistência desses obstáculos que são interpostos para uns, retirados para outros. A arbitrariedade de gente avaliando que nunca te viu, dizendo coisas sem antes indagar, ou procurar saber… Pois é disto que vem certamente reconhecer, ainda mais, nas mãos de Machado, um bisturi de precisão para extirpar o peso das coisas vãs, o que muito me alivia.
Então: tenho opinião diferente porque eles precisavam do sucesso, e eu não? Entrando na vibe de Machado, repeliriam o sucesso? Jamais diria algo assim, todos precisamos do sucesso. Mas temos formas diferentes de ponderar o que é o êxito, suponho. Parece-me algo muito exitoso demonstrar com meus próprios passos as contradições de quem prega isonomia, direitos humanos, fraternidade, tolerância, democracia… Mas Machado fez isso sem levantar da cadeira… Ah! Se bem minha vida nunca foi tão difícil, quando se suponha, mirando os meus fardos: sempre haverá aqueles que também gostam de Machado, e a companhia de quem partilha desse correto ceticismo sobre o próprio mérito é das melhores.
E me lembro de um evento de minha infância que talvez explique um pouco a minha resistência a proceder como os demais. Era o Jardim II, e eu tinha 4 anos, mas tenho uma memória de infância vívida. Na Páscoa, os professores esconderam ovinhos de chocolate no jardim e pistas do tesouro para que as crianças encontrassem os prêmios. Eu fiquei animadíssima e lógico, queria ganhar o prêmio. Mas as crianças corriam freneticamente, todas num grande cardume, de um lado para o outro, numa grande confusão, para o lado em que cada professora mandava. Os meus amigos nem sequer conseguiam mais me discernir, pareciam completamente transtornados pela euforia de ganhar o prêmio. Uma boa amiga, havia poucas horas, me deu uma cotovelada, quando tentei me aproximar para participar da brincadeira.. Já um outro colega, um pouco maior, me empurrou. Mudaram por completo de atitude. Passavam por mim completamente eufóricos, correndo para lá e para cá, numa espécie de transe, irritados que eu estivesse meio a eles, ou no meio do caminho…
Vendo a minha reação de não entender por que tudo aquilo, e o meu interesse em achar um ovinho, meu pai disse para eu prestar muita atenção, que ele daria as melhores dicas: o segredo para achar o tesouro era procurar onde ninguém estivesse procurando. Parecia uma dica muito boa: porque a confusão de crianças disputando pelos ovinhos era muito grande, e a adrenalina ali não permitia discernir nada, um atropelando o outro. “Mas onde?”, eu perguntei a ele. “Onde menos se espera”, ele sugeriu. E foi me acompanhando de mãos dadas, enquanto calmamente eu o liderava, procurando ovinhos longe do cardume de crianças frenéticas. Ao final, acabaram os prêmios: as crianças frenéticas acharam tudo; e eu não achei nada… Absolutamente nada. Descobri lugares que eu não via antes, mas não havia nada nos lugares inusitados. Voltamos para casa em um completo silêncio, acho que eu nunca estive tão aborrecida em toda minha vida… Minha mãe comentou algo, no banco da frente. “Aqueles ovinhos eram pura gordura hidrogenada, não prestam”… Eu retorqui com poucas palavras, enfezada: “Não importa! Oras! Eu queria achar o tesouro!”. Silêncio paterno e materno. Meu pai então pergunta: “você quer que a gente vá ao supermercado comprar os ovinhos?”. “Não!”, eu respondi, de cara fechada.
Fiquei muito brava um tempo, com eles. Alguns dias depois, no domingo de Páscoa, pegadas de trigo, de coelhinho, e um ovo grande e delicioso no jardim… Foi maravilhoso esse prêmio, fácil, mágico e delicioso, sem ter ninguém disputando, nem todo aquele estresse… Um ovo de chocolate de verdade, grande, só para mim, com bombons dentro! Nunca me esqueci disso. Respeitar pai e mãe… E mais: meu aniversário, naquele ano, além disso, mesmo meses depois, foi de coelhos. Foi a festa mais linda de minha vida. Não convidei meus colegas de escola. Ganhei carta branca em muitos assuntos, pela minha decepção. Convidei só meus primos e o gerente do banco Nacional, onde meu pai havia aberto uma poupança para mim. Eu era apaixonada por ele, era bonito: lembrava o Ayrton Senna. Sempre me dava atenção e me dizia super linda e inteligente. E ele veio ao meu aniversário, trouxe uma boneca do meu tamanho, de presente… Jamais me esqueço da minha felicidade com o abraço dele, minha paixão aos 5 anos.
Hoje, quando eu vejo as pessoas disputando e correndo freneticamente por algum tipo de prêmio instantâneo, penso que os meus pais me educaram corretamente. Depois, ser fiel ao que me ensinaram… Isso me dá sobriedade. De um certo modo, eles me ensinaram o que a Zora Neale Hurston aprendeu com a vida: “the nerve to walk my own way, however hard, in my search for reality, rather than climb upon the rattling wagon of wishful illusions”. Talvez algumas crianças tivessem ganhado a glória de um ovinho de gordura hidrogenada, as uvas verdes de minha mãe; mas logo depois estariam insatisfeitas em busca de outro prazer instantâneo. Meu pai segurando minha mão, deixando-se ser guiado, enquanto eu ia perscrutando o jardim, descobrindo no jardim os lugares que eu nunca havia parado para notar, e as árvores favoritas, num clima de festa, professoras gargalhando, com crianças loucas e eufóricas correndo para um lado e para o outro… Foi uma companhia muito mais louvável e inesquecível – ainda hoje eu lembro da nossa busca feliz, daquele sentimento de mapa do tesouro desconhecido.
Parece muito natural, portanto, que, desde esta diferente circunstância de vida, eu tenha me apegado mais a Machado que os dois modernos escritores a ele. Machado criticava o torpor de arrogância de quem se guia pelas aparências e acha já sabe tudo, os cardumes que vão correndo atrás de um padrão de coisas que não valem nada, transmitindo como ensinamentos uma euforia por coisas sem sabor que não valem para todos… Nele também vive o âmago da literatura negra. Mas não era, por outro lado, um escritor antissistema… Tinha certa sabedoria, suponho, um sistema sempre será substituído por outro, não necessariamente melhor que o anterior. Eu me apeguei a ele a tal ponto de lê-lo como se fôssemos velhos e bons amigos.
Eu estava no início da adolescência, quando li Memórias Póstumas, e me encantava o sabor das palavras novas. O trabalho de ir tantas vezes ao dicionário não me cansava, era algo trabalhoso, mas desafiante. E ao mesmo tempo eu assistia meu seriado favorito, Zorro, com Guy Williams. Ao abrir Memórias Póstumas, eu não podia evitar a transposição das imagens do meu espadachim favorito para a obra de Machado. Lembro-me vividamente do local e da escrivaninha onde eu li esse livro, um lugar típico do século XIX que inventei na minha imaginação para poder ler desde o mesmo lugar onde estava o escritor - talvez isso me permitisse entender melhor a obra dele, naquele tempo muito difícil de ser lida. O lugar ficava, na realidade, dentro do quarto de meus pais, no bairro Liberdade, em Porto Velho, Rondônia. Tentava adivinhar o que o autor queria me dizer, de tão importante, que tivesse merecido aquele esforço visivelmente hercúleo e tão calculado na escrita. No final, não era nada. Nada? O fim era nada dando em nada? Todo aquele esforço para dar em nada. Não me irritou, entretanto. O protagonista era tão rápido em esquecer seus projetos de esforço que a conclusão dele sobre a miséria humana não me pareceu merecer tanto crédito. Achei genial que Machado tivesse construído a profundidade zero do problema. E no entanto, nisso mesmo a solução, algo que transpõe o algoritmo do enredo, livros com segredos de um sorriso entre autor e leitor.
Entre os meus livros, guardei Brás Cubas no meu altar de livros, para ler de novo depois e tentar descobrir ao menos algo novo nas entrelinhas, pois acho que ainda não li tudo possível de ler ali. Tive a impressão de que era não um corolário, mas um repositório de certos modos de vida. Achei um grande feito tê-lo lido com atenção e profundidade, pois era uma leitura muito mais difícil que Dumas e Victor Hugo. Sempre notei com muito gosto as diversas resenhas que fizeram dele. Destoavam da minha impressão original, de que Brás Cubas tinha ao menos o mérito de uma imaginação fértil, algum carisma de desobediência; mas gostava da confirmação de que Machado retinha uma certa gana em dessacralizar o que não era sagrado. Já para Dom Casmurro, detestei as resenhas fascinadas com a sensualidade de Capitu. Penso que fantasiavam e escapavam do que Machado enfocava, os comentaristas olhando mais para as próprias preocupações de traição e fofocas de relacionamentos, do que para o problema de se impingir frustrações e insistir em permanecer nelas.
Naquele tempo, portanto, Machado também me aparecia dando saltos de muros e voando em cima daquela gente prepotente da corte do Rio de Janeiro ironizada nas novelas das oito, floreando a sua espada com uma precisão impressionante, pulando em seu garanhão negro, a ironia. Quem não vibrava lendo a Teoria do Medalhão? “Por onde passar/ a justiça fará/deixando a marca do Zorro”… Machado rasgava a roupa daquela gente parasitária dos escravos com a sua espada, Machado, El Zorro! E traçava um “M” nos seus escritos, nas inutilidades, como o Zorro traçava um “Z” com a espada, nas roupas luxuosas dos coroneis impiedosos e politicamente volúveis, indiferentes ao sofrimento dos mais humildes… Sim, Machado era para mim um herói, eu vibrava a cada parágrafo em que ele avançava com passos de espadachim inexorável, satisfeito apenas após derrubar por completo, golpe após golpe, o seu adversário. Onde ele encontrava tantas palavras dando uso que eu jamais havia lido? E tantas vezes vi um tanto de intelectuais enfezados em ter de ir ao dicionário, inconformados que o escritor não fosse um garçon… E Machado pedindo gorjetas seria ainda mais ele mesmo… É preciso contextualizar que, no Brasil tanto daquele tempo e em alguma medida hoje, o sinônimo de dicionário é “pai-dos-burros”… Para quem se tem por muito sabido, ir ao dicionário é sinônimo de humilhação.
Também depois, quando li a Sereníssima República, pensei que nada melhor poderia ser escrito além daquilo – e me recordo do dia e local onde li esse conto: eu estava em meu quarto, na rede, em Sobradinho, num final de tarde de sábado. Se eu me lembro vividamente é porque me impactou de um modo permanente. Ali naquele conto estava o fim da ciência política. Um banzo de mais do mesmo resumia bem a nossa inércia política de querer ficar plantando e colhendo de uma monocultura de contradições. Tantas regras para resolver um problema que não poderia ser resolvido com novas regras. Cursei depois o mestrado em Ciência Política com a desfaçatez de um monge, graças a esse conto.
E bom, no período mais difícil de minha vida, enquanto eu enfrentava problemas da vida adulta, por volta de 2002, época do nascimento de minha primeira filha, ela o meu coração fora do peito… Veio parar em minhas mãos, como que por pura mágica, o livro O Alienista. Nisto conheci o Machado “bruxo”, amigo que me alcança quando já tinha esquecido dele. Esse para mim é o melhor livro que já li. A obra me colocou de pé e me fez tão forte que eu poderia enfrentar todos os exércitos proto-fascistas, proto-nazistas e pós-debilóides que viessem a sugir em todos os tempos no planeta. Beijei sua capa ao terminar sua leitura, como algo perfeito demais para ser só um livro de bolso. O Alienista é uma verdadeira ode à sanidade pública. O meu livro para sempre favorito. Na obra de Machado, uma besteira é uma besteira, por mais os personagens queiram dar valor e princípio ao que não tem valor e princípio algum. Ele me fez ter também uma vontade de escrever para valer, vontade que guardei comigo muitos anos.
Não vejo, portanto, o estilo de Machado como um estilo empolado: pois tenho a impressão de que a obra de arte dele incorpora toda a matéria dos floreios e ornamentos que marcam a cultura daquele período. E bem noto que não apenas ele varia em fase de vida a linguagem, ele varia a linguagem utilizada conforme a obra. Observem os leitores que Brás Cubas, mais rebuscado, é de 1880, e o Alienista, menos rebuscado, de 1882. De todo modo… Como poderíamos comparar Congonhas, e os altares barrocos e cheios de rococó de Tiradentes, Ouro Preto, com a Catedral de Brasília? Certamente que se ficarmos apenas neles, encontramos suas desvantagens: um por vezes torna a atmosfera lúgubre, pelas cores escuras, outro faz ambiente de pane ao meio-dia, sendo uma estufa de vidro. Tomar uma obra por este ou aquele defeito nos privaria de admirar sua beleza e qualidades, seus aspectos gloriosos e aprazíveis, que nos servem de modos distintos e nos colocam em diferentes marchas. Nem por isso são menos desejáveis, tanto que tornamos a esses lugares, algumas vezes.
Não acho que Guimarães Rosa nem Clarice Lispector tenham tomado a obra de Machado pelos seus defeitos. Porque visitaram e analisaram sua obra como um ponto de partida. E o próprio Machado acharia ridículo que a ele se prestasse uma absoluta deferência.
Eu não incluiria Machado na estética moderna, nem barroca, nos movimentos que formam contrastes. A escrita dele está mais para a estética colonial, das fazendas amplas com varanda, de paredes espessas, móveis antigos e piso simples, madeira e piso super polido por mãos negras invisíveis, que acenam para o Brasil profundo, sem filtro. É a sensação de conforto que tenho, ao adentrar a obra dele, dos espaços amplos, mas não menos ornados de detalhes originais, as coisas que reconhecemos pertencem ao mesmo lugar, panoramas que nos são familiares.
Além disso, acho que, por ter lido muito jovem e precisando de um esforço trabalhoso, fiz algo que nem Guimarães nem Clarice fizeram: li Machado aos poucos, devagarzinho, um trecho de cada vez. O fato é que os romances naquele tempo eram publicados em folhetins. Os leitores tinham o texto diante de si alguns dias, antes de prosseguir na leitura. Portanto a coisa tinha de ser pungente em cada capítulo. Lógico que, tendo provavelmente Guimarães e Clarice lido um volume de uma vez só, ávidos por absorver todas as propriedades de um grande escritor, passaram mal. Aí regurgitaram Machado. Sou totalmente contra que se leia um livro antigo como se fosse moderno! Um livro feito de folhetins é uma torta pesada: para se comer aos pouquinhos. É um defumado, para cortar bem fininho, pôr aos pouquinhos com azeite no pão. Uma trufa para se fatiar em espessura milimétrica e dar sabor aos acontecientos. Um destilado para se tomar em pequena quantidade depois da refeição, para digerir o dia. Se eu for beber a garrafa inteira de uma vez só, ou comer uma torta inteira, até o fim, óbvio que eu vou reclamar de passar mal e ao final o sabor estará péssimo. Imaginem pegar um defumado de alta qualidade e comer diretamente a peça inteira com os dentes, até o final, morder em pedaços grandes, até terminar tudo… Como eram leitores ávidos, fico com a impressão de que sim, eles andaram fazendo isso! Não para menos os mais jovens detestam essas leituras obrigatórias, feitas com prazos sem parcelamento, sem a orientação devida para apreciar uma iguaria.
Neste sentido, todo este amor por Machado de Assis, face às críticas de dois grandes escritores, não me impede, entretanto, de admirar as obras de Guimarães Rosa e de Clarice Lispector. Sendo mais recentes, ainda não passaram pelo crivo dos séculos, como os demais autores reconhecidos pelo aluno de elite de Direito no Rio e o seu fiel jornalista, muito acertados no devido reconhecimento. Mas creio que, em certa medida, ao menos a opinião de Clarice se demonstrou verdadeira: ela é muito mais traduzida e mais lida que Machado em diversos países. Ela o superou em alguma medida! Acho isso positivo: que esses dois autores tivessem se proposto ir além de Machado. O que me chamou a atenção na crítica de ambos é a visão oposta que parecem nutrir a respeito dele: para Clarice, ele não segue regras. Já para Guimarães, é o contrário: ele é totalmente previsível, a ponto de ser enfadonho… Sendo ambos modernos, por que destoam?
Interessante que Euclides da Cunha não agradasse Clarice Lispector, já que ele que narra uma tragédia fundamentalmente desdobrável em distintos planos. E, por outro lado, observo que a magnum opus de Guimarães Rosa se chamasse “Grande Sertão: Veredas”, ressonando “Os Sertões” de Euclides da Cunha. Euclides da Cunha trabalhou numa Comissão Demarcadora de Limites, interessantemente. E ocorre que Euclides da Cunha e Machado de Assis têm algo profundamente em comum. Guimarães Rosa chefiou a antiga divisão de Fronteiras, que era responsável pelas Comissões Demarcadoras de Limites.
Trabalhei também nessa área, a qual mantém as mesmas atividades desde o Barão de Rio Branco, setor da diplomacia tradicional que permanece a mesma desde então, interessada em abortar toda e qualquer disputa, desenredando as controvérsias antes que se instalem. A meu ver, a literatura é necessária nesse domínio de trabalho diplomático – e parece-me que o Barão de Rio Branco achava o mesmo, com seus tantos pseudônimos e diários cheios de compasso. Porque desenredar eventos no plano literário, na realidade criada, faz encaminhar soluções também na vida, na realidade não criada. A vida e a literatura estão profundamente interligadas, sendo a realidade manifestação da imaginação e vice-versa.
Tenho a impressão, entretanto, que tanto Clarice como Guimarães se voltam para uma realidade do domínio interior. Já Machado está medicando o leitor enquanto registra um domínio que lhe é exterior, os perfis que circulam, desatentos de encontrar algum sentido para a vida, numa sociedade cheia de contradições sem muito sentido, interessada em justificá-las. É difícil para mim concordar, portanto, que Machado fosse egoísta, se tomamos por egoísta uma pessoa voltada para si mesma. Por isso me permito discordar de Guimarães Rosa, ao julgar Machado como um egoísta introvertido. Machado está o tempo inteiro preocupado em discernir uma realidade que vai além das aparências que as pessoas utilizam para demarcar importância na estrita circunscrição do que lhes interessa. Desde esta perspectiva, para mim Machado é completamente altruísta, brindando o leitor com o prêmio de uma certa sobriedade. O emplastro? Risos. Mas Guimarães Rosa teria de ter lido a Bíblia para compreender que Machado de Assis bebe de Eclesiastes, que existe nele um núcleo fundamental de sabedoria e justiça, senso presente ao longo da obra do Bruxo. E me parece que Guimarães Rosa buscou, a partir de certo momento em sua escrita, distanciar-se da noção de uma religiosidade institucionalizada, documentada. Os acontecimentos em seus livros pertencem ao domínio da oralidade e das palpitações – domínio, diga-se de passagem, bem característico do Itamaraty.
É lógico que, não sendo mais uma adolescente construindo cenários de aventura em que o escritor é meu protagonista e vingador, eu teria de recordar alguns aspectos menos elevados de Machado para ser completamente honesta. Quando ele fundou a Academia Brasileira de Letras com um grupo de amigos, havia entre os integrantes quem não tivesse publicado um só livro: enquanto Júlia Lopes de Almeida era preterida, sem que fosse encontrado ainda registro de seu protesto. Essa reserva contra o reconhecimento de mulheres em seus êxitos, poderia se argumentar, viria da sociedade brasileira em geral, e não pertenceria à natureza de uma academia de letras, necessariamente. E logicamente, esta questão para a qual tenho reserva está além da literatura que ele escreveu. Não tenho reservas sobre o que Machado escreveu? Não encontro defeitos na obra dele. Falando sério, mesmo!
Se me parece que o sentimento hostil à natureza feminina tivesse vindo dele e prosseguido no seio da Academia por causa de Machado, ao longo das décadas? Esta é a leitura de um problema que pertence ao nosso tempo, muito mais que ao tempo de Machado, onde o problema de ser boa mulher girava em torno da conduta privada. Leio que as mulheres apenas comporiam um percentual inferior a 5% dos nomes de acadêmicos escolhidos, para que suas obras fossem preservadas. Mas leio também que, quando lançou seu primeiro romance, O Quinze (1930), Rachel de Queiroz teria enfrentado desconfianças de Graciliano Ramos, escritor renomado em seu tempo, que não pertencia, de todo modo, à Academia. "É pilhéria!”, "Deve ser pseudônimo de sujeito barbado!”, teria desdenhado o autor favorito de Clarice Lispector. Reporto o que dizem os críticos especializados…
“O quinze caiu de repente ali por meados de 30 e fez nos espíritos estragos maiores que o romance de José Américo [A bagaceira], por ser livro de mulher e, o que na verdade causava assombro, de mulher nova. Seria realmente mulher? Não acreditei. Lido o volume e visto o retrato no jornal, balancei a cabeça: “Não há ninguém com este nome. É pilhéria. Uma garota assim fazer romance! Deve ser pseudônimo de sujeito barbado.” Depois conheci João Miguel e conheci Rachel de Queiroz, mas ficou-me durante muito tempo a ideia idiota de que ela era homem, tão forte estava em mim o preconceito que excluía as mulheres da literatura. Se a moça fizesse discursos e sonetos, muito bem. Mas escrever João Miguel e O quinze não me parecia natural. (Graciliano Ramos apud Luís Bueno. Uma história do romance de 30, 2006.)
E vejam que Rachel de Queiroz, prima distante, grande dama dos Fuzileiros Navais, foi a primeira mulher admitida pela ABL, e Graciliano Ramos ficou de fora… No fim das contas, talvez o pecado da exclusão de nomes como Júlia Lopes de Almeida, Cecília Meireles e Clarice Lispector tivesse sido redimido com as guinadas recentes. Mas se vê que efetivamente era um problema na sociedade em geral encontrar respaldo para preservar a obra de autoras, quando são mulheres iniciantes, que não gozam do favor de alguém dizendo sustentadamente que sua literatura é boa. O problema não estava incrustado, digamos, exclusivamente na Academia. Além disso, lembremos que as mulheres nos livros de Machado gozam de uma posição muito particular, talvez mais favorável que os homens. As personagens femininas e machadianas sabem o que querem, fazem menos drama e não se perdem em ilações desnecessárias…
E eu me recordo, ainda, do elogio que Machado de Assis fez a Narcisa Amália, poeta vítima de difamação do ex-marido, o padeiro da cidadezinha de Rezende. Não apenas o Imperador Dom Pedro II reconheceu o mérito da poesia daquela tradutora de George Sand. Também Machado o fez, por tabela, ao criticar que ela tivesse parado de escrever, por problemas domésticos.
Assim que, do mesmo modo como penso algo temerário fazer juízo do valor de escritores por esta ou aquela característica que por alguma razão nos incomoda, também me parece indesejável fazer juízo pelos acontecimentos, os quais dependem de um grande número de variáveis e de um contexto do qual raramente temos tantos detalhes. Não julgueis, simplesmente? Fim da crítica? Não julgar para não ser julgada, tenho medinho? Que é isso… Ah, ele gostava do meu tio, sinto uma dívida para com ele? Não, bicho. Ainda que ele não gostasse de mim, como seus sucessores raramente gostam, Machado é bom por si mesmo. Machado nos salva dos piores micos de caber nos moldes e nos traz de volta à missão do escritor e do poeta de chacoalhar os acontecimentos, reinventar a vida autêntica, preferir a espontaneidade, a verve. O escritor precisa incomodar, para ser um bom escritor.
Ah, Clarice salva melhor, Guimarães Rosa salva melhor? Bom. O fato é que quem me salvou foi Machado. Prefiro o salgado ao doce. Mas lógico que um doce de vez em quando não é apenas bom, é necessário. De todo modo, eu tenho uma certa precaução quanto a essa perspectiva de que devemos ter esperança pelo que um autor escreve, pelas suas palavras garantindo o que não se pode garantir, na verdade. Machado não promete nem formula nenhuma falsa esperança e entrega muita coisa, ao mesmo tempo. Sinto-me segura na companhia de um homem realista, que não dá a menor bola para as mentiras que as pessoas contam para valorizar a si mesmas, nem para as grandes fórmulas universais que, no final das contas, convenientemente se esquecem de resolver os problemas do mundo – tantos discursos e exortações nem chegam a triscar neles, que dirá saber deles. Ele resolve o problema criando uma própria concepção, objetiva. Então acho menor o realismo mágico de Guimarães Rosa e a introspecção revelatória de Clarice Lispector? Olha, não vejo a obra destes dois amigos como superficial, longe disso. Eu só me permito discordar deles neste ponto: Machado de Assis é um grande escritor, e muito atual, ainda.
É lógico que Safo, Homero, Dante, Dickens, Victor Hugo, Fernando Pessoa e Herman Hesse podem ser julgados pelo mérito de ter produzido obras de valor inestimável, quando o quesito é literário. Mas também é verdade que o valor das obras deles cresceu quanto tanto mais se mirou para elas, em estudos e aprofundamentos, à medida que suas linhas emprestaram cabeçalhos e inspiração para novos autores, ou permaneceram dizendo algo relevante, além do tempo. O entendimento das obras desses autores também toma esforço e tempo para montar quebra-cabeças com a história literária e com a história do próprio tempo em que viveram, tornaram-se fonte de providência para quem ama literatura e quer sobreviver disso. A obra de Machado de Assis alcança, neste ponto, uma singularidade parecida com os grandes mestres de outras culturas, ainda que alguns prefiram reconhecer Castro Alves. O brasileiro é irônico e tem como ideal ser despretensioso, duvida das determinações positivas que alguns almejam para controlar a realidade. Talvez a paciência do brasileiro médio se aproxime mais do humor, ainda que sutil, de Machado de Assis, do que da visão gloriosa de Castro Alves sobre a própria tragédia. No entanto, identificar um autor que tivesse melhor captado a alma do brasileiro é uma tarefa difícil, sendo o brasileiro também muito diverso em suas regiões e culturas.
Encontro ainda uma proximidade muito interessante entre Machado de Assis e Selimovic, assim como Danilo Kis. São autores ainda não traduzidos ao português no Brasil, mas de grande distinção nesta região dos Bálcãs, onde escrevo. Existe um trecho na principal obra de Selimovic, A Fortaleza, em que o narrador vai explicando ao leitor que não lhe disse tudo. Um recurso muito parecido com o diálogo íntimo que se estabelece entre Machado de Assis e o seu leitor. Além disso, ele, também como Danilo Kis, toma o leitor pelas mãos num lugar, para o deixar depois noutro, completamente diferente.
Agora o Itamaraty criou o Instituto Guimarães Rosa, por sinal, um órgão para fazer par com o Instituto Camões, ou par com a Sociedade Dante Alighieri, para a difusão da língua portuguesa em sua variação brasileira e desenvolvimento de projetos culturais. Essa escolha diz algo sobre o que consideramos cânon maior da nossa literatura, mas também a forma como olhamos para a literatura nacional.
Escolher um autor relativamente recente, para o qual ainda não encontramos à venda nas livrarias nem nos portais suas obras em inglês, diria algo da nossa visão muito pautada pelas impressões mais recentes? Assim como Clarice estava voltada para Graciliano, e Machado estava voltado para José de Alencar, agora o Itamaraty se volta para Guimarães Rosa? Não deveria o nosso instituto cultural se chamar Instituto Machado de Assis, ou Instituto Castro Alves, nomes consagrados há mais tempo como indispensáveis para se falar de literatura brasileira? Ou Instituto Vinicius de Moraes, Instituto Jorge Amado, Instituto Paulo Coelho, fôssemos tomar como parâmetro a maior popularidade e aceitabilidade do autor no restante do mundo? Sim, Paulo Coelho, também primo distante. Gosto dele, da literatura dele aberta ao mistério do que não sabemos, num mundo que se dá cada vez mais por satisfeito de ter encontrado as respostas… Estamos afinal no Brasil, onde quase todo mundo é parente… Ou então Instituto Ariano Suassuna, se fôssemos levar em consideração a opinião do povo? Pois não foi no auge da vida dele, mas quando já tinha falecido, que ouvi uma conversa entre o cobrador do ônibus e um passageiro habitual para uma cidade satélite em Brasília, dizendo que estava para ser lançado O Auto da Compadecida 2. E os elogios que lhe rasgavam. Para aquela amostra representativa do povo, Ariano Suassuna é o melhor escritor brasileiro de todos os tempos.
Entretanto foi escolhido Guimarães Rosa, alguém quem escreveu sobre venturas no Brasil profundo e desvalorizado, inculto, de um modo culto, aproximando os conflitos e disputas em diversos níveis, num deserto universal, tentando sublimá-los no clímax de uma revelação quase religiosa. Ele se apresentava no molde perfeito de um Embaixador renomado, exalava uma aura de segurança que têm os homens de êxito e de reputação inabalável. Sem dúvida a sua dedicação e o seu aspecto, tanto em black-tie quanto em elegante sobretudo, se encaixava perfeitamente no modelo de escritor europeu digno de um Prêmio Nobel, tendo ele vivido os grandes eventos do Século XX. Consola saber que, apesar de não ter ganhado esse reconhecimento no exterior, seja reconhecido antes por nós mesmos.
Mas Darcy Ribeiro falava de “povos-novos”, em Teoria do Brasil, “povos em disponibilidade, uma vez que, tendo sido desatrelados de suas matrizes, estão abertos ao novo, como gente que só tem futuro com o futuro do homem”. Sem embargo, povos que “tiveram suas primeiras cidades fundadas por ordens expressas e continuaram criando-as artificialmente; que foram reguladas em sua vida social, política, religiosa e espiritual pela vontade estatal, representada por burocracias coloniais, e continuam regidas por patriciados civis e militares, confiantes em que, pela outorga de leis e decretos paternalísticos, possam resolver todos os problemas dentro da velha ordem institucional”… (p. 21). Guimarães Rosa certamente ainda está mais longe do coração do brasileiro do que Dante do coração dos italianos, ou Camões do coração dos portugueses, ao menos neste momento específico em que escrevo.
Clarice Lispector também parecia assimilar essa cultura brasileira de determinações por decreto, geralmente amparadas no rigor ou concessão de uma autoridade máxima. Tanto é assim que, em sua carta a Getúlio Vargas, para tratar da sua nacionalidade aos 21 anos, escreve sobre o jornalismo como um mediador entre governo e povo:
“Demonstrei minha ligação com esta terra e meu desejo de servi-la, cooperando com o DIP, por meio de reportagens e artigos, distribuídos aos jornais do Rio e dos estados, na divulgação e na propaganda do governo de V. Ex.ª E, de um modo geral, trabalhando na imprensa diária, o grande elemento de aproximação entre governo e povo.” (Carta de Clarice Lispector a Getúlio Vargas, “Todas as cartas”. Rocco, 2020).
Clarice não era de escrever o que não sentisse e pensasse sinceramente, ao menos assim ela se apresenta. Com essa prerrogativa de colocar o governo acima do povo, e não a serviço do povo, arraigada em nossa cultura, talvez queiramos dar continuidade a essa prática regulatória, de escolher artificialmente um autor para desenvolver com ele uma relação posteriormente, por decreto? Deixamos de lado Jorge Amado por não aceitar a proeminência do Nordeste na literatura nacional? São perguntas para as quais não tenho resposta, tendo em vista que o nome de Guimarães Rosa é muito bem reputado por quem avalia literatura, em geral.
No meu gosto pessoal, Santa Rita Durão teria muito maior prerrogativa que Castro Alves, como autor de obra fundacional do Brasil, e também Santo Padre Anchieta, no seu Poema à Virgem. Ler Santa Rita Durão é como andar em uma Ferrari preta, caríssimo e indispensável, independe do mercado editorial sua reputação; não foi reconhecido por ninguém em seu tempo, nem neste, mas está na História, queiram os doutos ou não. Já ler Castro Alves parece-me dar a sensação de andar em um Rolls Royce tradicional, acenando como um presidente. Existe uma promessa de glória nele. Gregório de Matos, Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles, tão distintos: mas tão cheios de personalidade que se transpõe de um modo magnífico às linhas, as naves que percorrem oceanos do tempo. Cecília Meireles, um submarino nas profundezas de encontrar melodias do oceano. E José de Alencar, romancista que trabalhou febrilmente para vencer todo o território, também me pareceria ocupar um lugar especial no cânon literário brasileiro, alguém com voo de andorinhão, com escrita orgânica, trem onde cabem povos diversos para levar a lugares todos, ah, o sonho. Olavo Bilac também é um autor que anda em trilhos e cobre vastas áreas da alma humana, para mim um poeta que anda nas veredas da maçonaria. Todos eles muito distantes do modernismo, dificilmente poderiam concorrer com os últimos modelos de transporte recém-lançados, é verdade. As pessoas que preferem Raduan Nassar e Chico Buarque devem pasmar em que eu cite os autores obrigatórios, neste ponto, reclamando que estou caindo no mesmo buraco do jovem e ambicioso estudante de Direito.
Mas neste caso a preferência viria a meu prejuízo. O fato é que com cada um desses autores eu tive uma história pessoal que foi além do currículo, e quando os abro sinto como se deles brotasse uma água límpida e deliciosa. Depois do período escolar eles seguiram me enviando coisas a respeito de si e novas obras, alimentando a ideia de Clarice, de que a literatura nacional em nada deixa a desejar, quando comparada às obras reconhecidas universalmente.
Isto de comparar autores e analisar suas obras é, concordo, muito relativo, pois sempre se há de lembrar de alguma linha preferida, obra indispensável, a depender da circunstância que a pede, como a Clarice Lispector mesma sugere em sua entrevista quando jovem. Mas eis que alguns autores permanecem presentes durante mais longos períodos e nos acompanham a vida toda. A própria Clarice Lispector e Guimarães Rosa por vezes me agradam, menos na forma do que no conteúdo. Penso que eles criaram novos territórios interiores e resgataram a necessidade de vislumbrar respostas no domínio religioso, do pacto entre Deus e o homem de achar significado: estão num caminho que ascende do plano humano das coisas a uma realidade mais alta onde se possa encontrar sentido para a vida. No entanto: observo que, assim que contemplam esse plano mais alto e significativo, eles desviam o olhar e preferem permanecer apenas no vislumbre, saltando para algum próximo elemento de maior interesse, ou ideia ainda mais atrativa, num crescendum incessante, se bem maravilhoso, de palavras e significados…. Talvez porque se adentrassem o vislumbre, temessem definir e desfazer o mistério que pregam como objetivo da escrita; como se duvidassem que o mistério fosse mesmo mistério, coisa que não se esvazia, mas tanto mais se aprofunda, quando mais se mergulha para tentar apreender. Não conheço a obra completa de ambos, de modo que não duvido tenham dito algo a este respeito.
Agora, por que não gostavam da obra de Machado de Assis, é algo que realmente me escapa… Machado não deixa de aprofundar no que vê, sem esgotar o assunto, ele percorre as maneiras e as suas consequências. Talvez não gostassem do realismo? Do peso das nossas circunstâncias? De enxergar o que nos limita? Trouxe aos leitores a leitura da opinião deles sobre Machado, minhas impressões sobre literatura brasileira de qualidade, mas deixo também aos leitores estas perguntas, sem ter ainda uma conclusão.
* Ana Paula Arendt, pseudônimo literário de R. P. Alencar, é cientista política, poeta e diplomata.
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