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Mestre da luz ou Cavaleiro das trevas?








Mestre da luz ou Cavaleiro das trevas?


Resenha do livro “Uma breve teoria do poder” de Ives Gandra da Silva Martins




Por Ana Paula Arendt*



“Um governador sábio julga o seu povo; o governo de um homem sensato será estável. Tal o juiz do povo, tais os seus ministros; tal o governador da cidade, tais os seus habitantes. Um rei privado de juízo perde o seu povo, as cidades povoam-se pelo bom senso dos que governam”. (Eclesiástico 10, 1-3)



Esta é uma resenha do livro de Dr. Ives Gandra da Silva Martins intitulado “Uma breve teoria do poder” (Livraria Resistência Cultural Editora, São Luís, 2021,  319p.). A ele agradeço pelo presente e privilégio da leitura desta valiosa obra. 


Contexto 


No seu volumoso acervo de escritos, este livro parece se destacar com o prefácio do Dr. Ney Prado, secretário-geral da Comissão Afonso Arinos e, assim como Dr. Ives Gandra, professor da Escola Superior de Guerra, autor do livro “Os notáveis erros dos notáveis”, Editora Forense, 1987. O prefácio parece particularmente relevante, pois o livro “Os notáveis erros dos notáveis” ensejou o envio do relatório da Comissão Arinos ao Congresso Nacional – resenhado pelo Dr. Ives Gandra, num artigo publicado em 1/5/1987 no Estado de S. Paulo, um artigo mantido no arquivo histórico do Senado Federal como crítica ao livro de Dr. Ney Prado.


(Não deixa de ser interessante que esta resenha guarda uma ligação  prosaica com esse artigo de jornal. Se o relatório da Comissão Arinos não tivesse sido enviado antes ao Congresso, para ampliar o debate sobre a Constituição, e incluir o povo, como Dr. Ives sugeria, o Senador Odacir Soares não teria convidado meu pai e os meus tios, entre tantos cidadãos, para visitar sua residência, em Porto Velho, e participar dos trabalhos. Eu não teria ficado perambulando em sua casa vendo todo aquele povo indo e vindo, agricultores, trabalhadores, sindicatos e gente de toda sorte, nem teria ficado brincando no elevador da casa do Senador, ou vendo os detalhes das flores, jornais e papeis e livros ornando as várias mesas na casa dele. Logo, não teria me interessado por política tão cedo, e provavelmente não estaria escrevendo esta resenha). 






Dr. Ives Gandra Martins está completando 90 anos em 12 de fevereiro. Cabe, portanto, uma biografia resumida da sua nobre figura. Ele formou-se em Direito pela Faculdade de Direito da USP, no Largo, em 1959, onde conheceu sua única esposa – e amor de sua vida, a quem dedicou um soneto de amor por semana, formando espessa obra de sonetos ao longo da vida. Tem 9 filhos, fez doutorado em Direito pela Mackenzie. Conselheiro e membro da OAB, presidente emérito da Academia Paulista de Letras e da Academia Brasileira de Filosofia, ele é por muitos considerado uma das figuras mais proeminentes do conservadorismo no Brasil, por seu vínculo com a Opus Dei. Entretanto, ao  mesmo tempo – isto é importante, simultaneamente – ele faz parte da rede americana Atlas Network, organização que prega ideias libertárias. Ele é professor de várias universidades de Direito, e inclusive das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). Ele presidiu também o diretório paulista do Partido Libertador durante 1962-1964, quando aquele partido trouxe como solução o Parlamentarismo, para que Jango tomasse posse – partido depois extinto durante o regime militar. Recorde-se o símbolo do Partido Libertador era um barrete frígio. Ele foi condecorado, ainda, por Fernando Henrique, Lula e pelo presidente socialista português Marcelo Rebelo de Sousa – nada menos do que três presidentes que prezam a democracia e a estabilidade política o dizem um grande homem. 





A obra “Uma breve teoria do poder” não parece o livro mais importante de Dr. Ives, sendo certamente o seu livro de Sonetos bem mais imponente. Mas traz uma reflexão madura sobre a natureza humana, como os homens concebem graus e se relacionam com o poder, o  estabelecimento de mecanismos de exercício do poder. E, em especial, traz detalhes passim sobre a Constituinte e explicações sobre o que pensa a Constituição Federal.

A primeira pergunta que o leitor me fará é: por que o autor escreveu este livro. 


Parece-me que, se bem um livro não se julga pela capa, esta edição possa ser explicativa, com a imagem de Santo Antão cercado de demônios. Para quem ainda não conhece este santo, trata-se de um dos fundadores do movimento monástico. No século III, alguns religiosos preferiram se isolar das cidades no deserto, em cavernas, por causa de  perseguições, mas também por certas incompatibilidades entre o mundo secular e a vida espiritual dedicada aos assuntos sagrados. É o caso de Santo Antão. Mas nem por viver no deserto ele se viu livre de demônios: eles o encontraram na caverna, e sem motivo o espancaram.


Santo Antão atormentado por demônios é uma alegoria muito útil para o assunto de um  livro sobre o poder: também aqueles que são elevados a cargos decisórios importantes passam a se comunicar cada vez menos e se veem cercados de demônios. Os demônios tornam a comunicação uma causa de mal-estar. Poderíamos falar de representações do autoritarismo, do orgulho, do egocentrismo, da vaidade, da paranoia e da ansiedade – e por que não? Dos assessores que, ocupando proximidade ao poder, inspirados por maus humores dessas potestades, estão sempre de prontidão para atacar todas e quaisquer pessoas que se aproximem do poder, com receio de que o decisor venha a ser exposto, ou de que venham a ser substituídos em seus cargos. Ao produzir tantas dificuldades, os demônios levam à danação de quem ocupa a posição de poder, fazendo perder a proximidade com a realidade, o senso da tomada de uma decisão, o espírito das palavras, a necessidade de reflexão. Eis resumidamente o tormento de Santo Antão, ao se relacionar com o mundo, quando estava isolado no deserto. 


Para a diplomacia, Santo Antão atormentado pelos demônios é uma alegoria sobre o poder muito pertinente. A tarefa do diplomata é estabelecer relações de amizade e delas auferir auxílio para a manutenção da paz entre diferentes povos e culturas; e para tanto, é preciso alcançar o coração do interlocutor, a fim de estabelecer uma relação em que a amizade seja autêntica, e o diálogo, a troca de informações e percepções seja confiável e estável.  Compreender melhor de onde vêm esses demônios ao redor do poder, que repelem a aproximação, parece um exercício fundamental. E a dinâmica que torna o poder um fenômeno breve interessa também à atividade diplomática. 


 Ao final, consta na hagiografia, Santo Antão sobrevive aos demônios, e se restabelece por milagre divino, e também com a ajuda de seus amigos. Vários monges seguiram o seu estilo de vida eremita e obtiveram a vantagem de estabelecer uma conexão benéfica com a realidade e com os interlocutores. “O número de monges foi crescendo, mas o interessante é que, quando iam se aconselhar com ele, chegavam naquele lugar vários monges e perguntavam: “Onde está Antão?”. E lhes respondiam: “Ande por aí e veja a pessoa mais alegre, mais sorridente, mais espontânea; esse é Antão”. 





O tormento de Santo Antão, Michelangelo.


O milagre, o sorriso e a espontaneidade de Santo Antão, contudo não estão neste retrato que orna a capa do livro de Dr. Ives, certamente pela concepção pessimista sobre o poder nessa obra, e seu tema. Aparece apenas o homem santo resignado, transtornado por muitos demônios.    


Poderia elaborar uma resenha sobre este livro à luz dos mais recentes estudos da ciência política, ou sob a perspectiva dos grandes pensadores da filosofia política, ou também conforme a política comparada, para avaliar a validade de suas premissas e asserções de uma maneira mais sistemática. Entretanto, o autor afirma que o livro não serve para isto. De modo que tenciono analisar o livro de Dr. Ives também de um modo despreocupado, para efeito de lazer, talvez sob a luz do pensamento e ação de bons governantes, como sugerem Ben Sirá (Eclo) e o Rei Davi (2 Samuel). Estes conformaram os melhores parâmetros de governantes que tenho, pela força de seus preceitos morais; ao menos dentro do enquadramento do que é bom segundo a fé cristã. Também me pareceu mais adequado ter em conta essas referências bíblicas pelos sinais contidos nas páginas de guarda do livro. No início e encerramento do livro, consta publicada a medalha de São Bento: parecem indicar que o livro se presta a um santo propósito. 


A perspectiva de um jurista sobre os assuntos de Estado


Adentrando suas páginas, Dr. Ives justifica a adjetivização “breve teoria”, contida no título da obra: “(...) em face de não se tratar de nenhuma teoria política, filosófica, sociológica, econômica, jurídica, ou mesmo histórica (...). É apenas uma teoria sobre a natureza do homem, no exercício de domínio sobre os outros, quando assume o governo. (....)” E que “sobre a natureza humana no poder, não acredito em teorias. O homem busca sempre o domínio e seu maior ou menor poder decorre exclusivamente  de sua maior ou menor força” (op. cit. Introdução, p. 45).    


Essa introdução parece negar a si mesma: pois toda teoria que versa sobre a natureza humana se desdobra necessariamente sobre a política, filosofia, sociologia, economia, Direito e História, por mais não se declare um estudo sistemático. 


De início, o autor nega também a possibilidade de teorizar o poder como algo decorrente da diversa ação humana, tomando este conceito como a transposição direta da força para exercer domínio.  A leitura suscita, contudo, possibilidade de enxergar múltiplas facetas desse conceito ao longo da obra e de problematizá-lo, de maneira que a análise do livro não pode ser nada breve. 


A sabedoria parece estar contida no título: “breve teoria”. Pois ao lado da palavra poder, tudo se torna mais breve. Como ensina o Eclesiástico: “A duração de todo o poder é breve; uma doença prolongada cansa o médico. O médico atalha um breve mal-estar; assim, um que hoje é rei amanhã morrerá”. (Eclo 10, 11-12). Quão breve? Conforme o autor do Eclesiástico, presumidamente Ben Sirá, o problema da brevidade do poder se dá pelo crescimento do orgulho dos governantes. Quando renegam quem lhes deu o poder e a origem de todo poder, passam a atacar os governados e tornam-se breves: “Deus derrubou os tronos dos chefes orgulhosos e em lugar deles fez sentar homens pacíficos.” (Eclo 10, 17). 


Na obra de Dr. Ives se nota a influência do Rei Salomão, e de seu pessimismo – injustificado, diga-se de passagem, pela sua boa fortuna de muitos filhos. Pessimismo esse reconhecido e ressaltado no prefácio de Dr. Ney Prado. “O sol se levanta, o sol se põe e se apressa para voltar a seu lugar, onde renasce.” (Ecle 1, 5). E eu arriscaria dizer que Dr. Ney Prado prefacia tendo alguma preocupação com essa visão de mundo, pelas frases de Dr. Ives que escolhe e sublinha. Diferentemente da concepção tradicional do Sirácida (Eclesiástico), o autor não defende que o exercício do poder possa obedecer a diferentes lógicas, conforme a conduta de cada governante; ou conforme a qualidade das instituições. Ele delimita o problema do poder como algo relacionado à natureza do poder como uma vantagem, e seu exercício algo dependente da natureza de cada indivíduo que o exerce.


O autor suscita o tema para desmistificar sua importância? O livro tem o poder como centro dos interesses do autor. Parece, portanto, que não, pelo contrário. Há um esforço analítico para delinear um cenário político que se repetiria em diversas ocasiões na história de civilizações, mas parte da premissa de que o objetivo do poder deveria ser o dever de servir; e se esforça para compreender os limites da realidade, quando esta contraria o dever ser – logo, ele explora onde seria possível atuar para alcançar o bem comum. 


O poder no microcosmo do indivíduo e a natureza humana


Dr. Ives quer encontrar as causas que movem os indivíduos a buscar o poder, e entender melhor as razões por detrás de suas vicissitudes. Assim, ele o define: “Uma autêntica teoria do poder parte do princípio de que quem o pretende, deseja-o por um instinto de sobrevivência que repercute numa ambição sem limites pelo comando e pelo domínio, que se encontra em todas as esferas da vida humana. (…) Em outras palavras, o poder se justifica pelo poder e não pelo dever de servir.” (op. cit., p. 51). 

Nesta primeira parte que versa sobre causa do poder, seus atributos e sobre a origem da lei, diversamente de Ben Sirá, Dr. Ives argumenta que o problema da conversão do poder em abuso não se fundamentaria num desvio de conduta por orgulho. Ele descarta essa diferenciação entre poder e abuso: define poder como o exercício de mando. Também de um modo diverso do Sirático, busca a origem do poder em uma motivação ancorada na natureza humana, e não na fonte divina. O poder atrairia o gênero humano pelos seus supostos benefícios e vantagens materiais.


É uma obra pessimista? Em vários trechos, parece que sim. Dr. Ives traz para junto de si Cálicles, o filósofo rejeitado pela filosofia socrática, afirmando que a lei não serviria para proteger o mais fraco do mais forte ou para estabelecer normas de justiça; mas refletiriam normas dispostas pelos poderosos, pelos que alcançaram o poder por dispor de maior força. O autor distingue a teoria da práxis: em tese, poderia se afirmar que a lei serviria para nobres propósitos; mas na prática, quando implementada, faria perpetuar o poder acumulado, por instinto de sobrevivência daqueles que detêm os instrumentos da lei e do governo. Penso que isto revela muito sobre o pensamento do autor, considerar que a lei a justiça propostas pelos socráticos apenas poderiam conformar uma teoria. Tendo em conta o imenso esforço que tantos fizeram pela lei e justiça, e o sacrifício dos que pereceram, essa afirmação é, sem dúvida, uma novidade. 


Não está claro para mim por que o autor não recorda dos esforços e sacrifícios de Cristo e dos Santos, ou mesmo dos homens e mulheres seculares íntegros, tendo em conta os sinais religiosos que marcam o livro. Cristo é citado na p. 191, mas para recordar sua parábola sobre a melhor estratégia de um monarca mais fraco em capitular. Contudo, se um governante precisa submeter-se a Deus, antes de assumir seu mandato, não deveríamos também os que estudam  os governantes e os seus governos partir do mesmo princípio? Dentro da perspectiva cristã, todo poder e autoridade é instituído do alto: “Todos devem sujeitar-se às autoridades governamentais, pois não há autoridade que não venha de Deus; as autoridades que existem foram por ele estabelecidas.” (Carta de S. Paulo aos Romanos 13, 1); e ainda: “Por causa do Senhor, sujeitem‑se a toda autoridade constituída entre os homens; seja ao rei, como autoridade suprema; seja aos governantes, como enviados por ele para punir os que praticam o mal e aprovar os que praticam o bem. Pois é da vontade de Deus que, pela prática do bem, vocês silenciem a ignorância dos insensatos.” (1 Pedro 2, 13-16). E haveria ainda de se enxergar, ao tratar da natureza do poder, sua fonte:  “Ó Senhor, tua é a grandeza, o poder, a glória, a vitória e a majestade, porque tudo quanto há no céu e na terra a ti pertence. Ó Senhor, o reino é teu, e tu governas soberano sobre tudo e todos!” (1 Crônicas 29, 11). Mesmo no horizonte escatológico, parece necessário afirmar que o poder vem de fonte mais alta: “Eles proclamavam em alta voz: “Digno é o Cordeiro, que foi morto, de receber a plenitude do poder, riqueza, sabedoria, força, honra, glória e louvor!” (Apocalipse 5, 12). 


E se tomamos que nossas sociedades e nossos Estados foram concebidos debaixo de preceitos cristãos (os juramentos e a Constituição incluem Deus nominalmente), apesar de postar-se como laico, para admitir todas as religiões; como poderíamos reduzir o conceito do poder ao mando sobre as coisas materiais, ou analisá-lo a contento, sem adentrar a esfera espiritual, ou a dimensão religiosa por detrás dos preâmbulos, dos juramentos em que as autoridades se submetem?  Mesmo nas culturas asiáticas – e o autor recorda Confúcio – pareceria conveniente adentrar os princípios de justiça que fazem elevar e derrubar oficiais e governos, uma dinâmica que encontra consonância com os preceitos de justiça da fé cristã. 


Pondero, neste ponto, se conviria excluir da evidência a prática que se volta para afirmar os princípios socráticos, de amor à verdade. Por que o autor descarta tantos exemplos históricos e quotidianos em que a lei foi fundamental para resolver controvérsias com menores danos para a sociedade? Exemplos e números sempre podem ser citados para comprovar qualquer tese que se tenha, inclusive de que o caríssimo sistema judiciário é inútil por inoperância; mas não se poderia negar que existem exemplos em grande número no qual a lei protegeu o mais fraco, como no caso Dreyfus, ou Nuremberg. Também nas abundantes decisões de Cortes internacionais, na atualidade, encontramos decisões que contrariam o equilíbrio de forças preponderantes. E o registro histórico, se bem inclui guerras e confrontos, também privilegia como referência aquelas personalidades que se empenharam em ideais de lei e justiça, por mais tenham sido derrotados, como provam as homenagens a Tiradentes e outros heróis que hoje estão no Panteão da Pátria.  A este propósito: permito-me recomendar aos leitores uma visita ao Museu Judaico no Rio de Janeiro, onde se encontram algumas cartas originais de Dreyfus; além de objetos antigos, do tempo de Herodes, e itens de vítimas dos campos de concentração. 


Dr. Ives abre exceção à regra ao abordar alguns homens que classifica como sábios, assumindo exerceram o poder em benefício dos demais: pondera que Marco Aurélio, em Roma, De Gaulle, na França e Fernando Henrique Cardoso, no Brasil, souberam fazê-lo. Mas sugere que “o saber não representa desprendimento, altruísmo, devoção ao serviço público, e nem seu objetivo maior é sempre e somente a sabedoria. Tal visão confuciana foi desmentida pela história.” (op. cit. p. 129). O que me faz hesitar em acolher essa afirmação é a falta de exame sobre a história da China e sobre a influência que Confúcio teve sobre o serviço público chinês; e também a falta de abundantes nomes dos quais se poderia levantar desprendimento, altruísmo e devoção ao serviço público, por mais não tivessem formação suficiente para ser chamados de sábios. Os efeitos dos ensinamentos de Confúcio não se limitam apenas ao período em que ele exerceu cargo nas terras de Lu (op. cit., p. 126, nota de rodapé 74). 


Mas o pessimismo não prevalece ao longo do caminho da escrita: Dr. Ives retém alguma esperança que o leva a aprofundar o assunto, resultando numa diferenciação entre duas classes de governantes, o político e o estadista. Ambos adentrariam a vida pública como idealistas; mas o primeiro se deixaria corromper pelos benefícios  do poder, tornando-o seu propósito final. O segundo tipo seriam aqueles governantes que não se locupletam, e saem com pior fortuna pessoal, depois de ocupar um cargo público, tais como Campos Salles e Prestes Maia (op. cit. p. 76). Permanece, portanto, uma esperança ao longo do livro, embora a visão geral seja pessimista, de que “A humanidade evolui dirigida por excesso de políticos e escassez de estadistas” (op. cit., p. 77).  


De início, parece-me que o critério de mensuração da fortuna pessoal antes e depois do cargo, apesar de ser boa medida, não seria suficiente para distinguir um político de um estadista. O político, para ele, seria alguém que atua para permanecer no poder e auferir benefícios; e um estadista, alguém que busca implementar uma visão de bem público, com desprendimento do cargo. Pois recordemos que Getúlio Vargas, embora tenha perdido muito mais que a própria fortuna, terminando com a própria vida, embora se possa argumentar estadista, foi um político que buscou centralizar o poder, perpetuar-se no cargo e silenciar a oposição. Lembre-se quando GV demitiu Afonso Arinos de Melo Franco do Banco do Brasil, pela publicação do Manifesto Mineiro de 1931, um mero artigo sugerindo a política fosse feita mais de gentileza que de força.  Então, conforme essa medida, ele seria um político? Ou um estadista?





Não se trata apenas de citar Churchill ou De Gaulle, como se apenas a fama e o reconhecimento póstumo pudesse ofertar concessão a essa tese. Como ignorar os memoriais dedicados ao Soldado Desconhecido, em diversos países, e as inúmeras palmas que ornam esses templos de devoção ao serviço? O Soldado Desconhecido fez certamente muito maior esforço e sacrifício pessoal do que Churchill e De Gaulle.


Tampouco poderíamos ignorar que Dr. Ives apresenta um viés elitista sobre as características que diferenciam o político do estadista. Assim ele afirma: “os conflitos raciais, o subdesenvolvimento intelectual de seus líderes e a selvageria dos nativos que buscam o poder, por vezes sem qualquer formação ou qualificação, voltaram a dizimar a população em algumas regiões, como se vivêssemos nos tempos das cavernas” (op cit., p. 118-119). Em diversas passagens, ele argumenta que o estadista é alguém que teve formação – presumimos nisto as distinções de conhecer História, valor da lei e fundamentos de governo e sociedade. 


Ora; sabemos que, mesmo tendo a melhor formação intelectual e humana possível, alguns governantes com pleno domínio do aparato estatal de seus países foram recentemente mal avaliados em cortes internacionais, no que diz respeito à proteção de direitos humanos de uma população debaixo de seu domínio. Poderíamos recordar, ainda, o General Tito: apesar de valorizado como um estadista dotado de grande humanismo e visão de futuro, seus apologistas assassinaram concidadãos. Inclusive o avô e parentes da poeta Milica Spadjer, a quem encontrei recentemente. De uma família patriótica, foram acusados de chetniks, quando não eram. Tantos outros prisioneiros enviados a Goli Otok. Apesar de ser um governante esclarecido, manteve preso Djilas por muitos anos, seu ex-ministro, não o tendo soltado antes que tivesse traduzido o Paraíso Perdido, de Milton, em papel higiênico. 


E vide, ainda, o nosso recorte mais recente, situação em que mesmo os melhores estrategistas militares, com excelente formação, permitiram atos contra medidas sanitárias estabelecidas pelo próprio governo durante uma pandemia, contaminando crianças, em contradição com qualquer princípio ético de pediatria, mas também de humanidade, sob a perversa tese de “imunidade de rebanho”. Naquela ocasião, Embaixadores com excelente formação defenderam a violação das medidas sanitárias, para cumprir a função de defender o governo, junto aos jornais estrangeiros que manifestavam contrariedade com esses eventos no Brasil – ainda que soubessem, pela excelente formação que tiveram, que a contradição agravaria em muito maior medida o número de cidadãos brasileiros mortos. 


Apenas podemos concluir que, mesmo esclarecidos e de excelente formação,  estadistas e estrategistas também são passíveis de cometer equívocos e abusos: sofrem muitas pressões para permanecer no cargo, e nem sempre conseguem controlar a máquina pública ou demais autoridades, por mais sejam bem formados e bem informados. Parece uma visão, portanto, bastante otimista, a de que uma vez no poder, o estadista teria ao seu alcance todos os instrumentos necessários para bem governar, como se a boa formação ou a sua natureza genética o dotasse de onisciência ou onipotência. 


Em prosseguimento, Dr. Ives afirma ainda o seguinte: “Estou convencido, no entanto, de que a busca pelo poder está de algum modo plasmada no tipo físico e psíquico de cada indivíduo” (op. cit. p. 75). Dr. Ives e eu também pensamos de um modo distinto quanto a isto, mas penso que a grande diversidade de tipos físicos que chegaram ao poder poderia sustentar minha defesa deste ponto; e também a modificação desses tipos físicos, conforme cada cultura, e cada avanço de civilidade. 


Ben Sirá também teria visão distinta de Dr. Ives em alguns argumentos, nesta primeira parte do livro. Pois se bem Dr. Ives salienta as vantagens do poder, sabemos que, a bem da verdade, desgraçados são todos aqueles que chegam ao poder. “Não tenhas inveja da glória e das riquezas do pecador, pois não sabes como vai ser a sua queda. Não te agrade a prosperidade dos injustos, sabendo que não ficarão impunes até descerem ao Hades. Fica longe de quem tem o poder de matar, e não passarás pelo medo da morte.” (Eclo 9, 16-18). E ainda: “Sabe que a morte está próxima, porque andas em meio de armadilhas, e no meio das armas de inimigos encolerizados. Tanto quanto possível, desconfia de quem de ti se aproxima, e aconselha-te com os sábios e os prudentes”. (Eclo 9, 20-21).  


O autor não parece cogitar que o exercício do poder seja um caminho cheio de armadilhas, arriscado, repleto de prejuízos, ferimentos, escrutínios, conspirações, traições e tantos outros eventos indesejáveis. Nós constatamos que o atributo de grave risco e ônus de fim da privacidade, assumido por quem detém o poder, repele a maior parte das pessoas de cogitar assumir cargos públicos. São também especialmente refratários ao poder os excluídos, desprovidos de recursos e de amizades para suportar o peso desse caminho, não apenas as pessoas de bom senso, que preferem uma vida tranquila. Foi assim, recordemos, que Santo Antão foi parar no deserto; e também São Bento, o qual orna o início e o final da obra escrita por Dr. Ives. O fato é que mesmo os reis mais poderosos guardam uma história cheia de tragédias – e quanto mais poder reuniram, ou tentaram reunir, mais trágico foi o destino deles. 


O poder no macrocosmo do governo e da sociedade


Sabemos, ainda, que os indivíduos e grupos que chegam ao poder jamais conseguem governar unicamente pela força, necessitando de ideias, instituições, discursos e ações substantivas que justifiquem antes a busca pelo poder e consolidem a legitimidade de exercer o poder, quando o obtêm. Porém o autor considera que estes elementos consideravelmente importantes seriam acessórios, e o poder, apenas, a finalidade daqueles que o buscam. 

Mas Dr. Ives está mais preocupado em adentrar a superfície para encontrar uma camada mais profunda do funcionamento do Estado. Por assim dizer, numa analogia: sabemos que nenhum ser humano restaria vivo desprovido de sua epiderme, da superfície de delicadeza, das características que singularizam cada rosto e pessoa; nem se poria de pé sem seu esqueleto, sua estrutura, ou de seus órgãos mais internos, em funcionamento harmônico. Mas entre a sua pele delicada e as entranhas dos ossos e órgãos interiores, existe uma camada em que encontramos os músculos e o sangue, os elementos constitutivos que fazem o organismo mover-se. Se cabe esta analogia, o livro parece, nestesentido, um recorte longitudinal do Estado em que se analisa essa camada necessária do corpo, o músculo do Estado. 

Por isso talvez o autor descarte as entranhas do ser humano, o desejo, o sonho e o ideal de mudança; os ossos, digamos, a lei e a aplicação da lei; e a epiderme, as palavras, instituições, discursos e ações afirmativas? Não necessariamente é uma escolha de restringir a análise. Para ele, essas outras camadas do Estado seriam um simulacro com vistas a manipulação dos governantes pelos governados. Vejamos:


“Na Teoria do Estado, o poder político é um meio de servir à sociedade, que escolhe seus governos. (…) A realidade, todavia, aposta em sentido contrário. Quem busca o poder, o faz pelo amor ao domínio, aos benefícios que decorrem do exercício do comando, não sendo imperioso, senão quando necessário ao interesse dos governantes, prestar serviços públicos.” (op. cit., p. 85)


“Na contestação, os detentores do poder acabam por “levar vantagem”, exceto quando o seu governo é de tal forma ruim que, mesmo supervalorizando o pouco que fizeram de bom, não é o suficiente para mantê-los. Nas democracias, com o apoio da imprensa, é mais difícil esconder os erros, as perseguições, a eliminação dos “indesejáveis”, uma vez que tais mecanismos chegam quase sempre ao conhecimento do povo. Nas ditaduras, é mais fácil esconder o errado. Há, todavia, um elemento que vai se tornando mais evidente, nos tempos modernos, com relação à luta pelo poder, no passado. É que mesmo entre os povos menos evoluídos politicamente, há um momento em que ocorre a tomada de consciência. Até mesmo nas ditaduras isso ocorre, implicando a necessidade de maior sofisticação, para justificar os que lutam pelo poder, na tentativa de convencer o povo de que são os melhores para governar. À nitidez, há um fértil campo de manipulação, principalmente das populações menos escolarizadas, que acreditam nas promessas, na esperança de conseguir ver melhorar suas condições. A universalização dos meios de comunicação eletrônica, em que o próprio analfabeto passa a ter conhecimento do que acontece no mundo (rádio, TV, internet etc.), exige um esforço cada vez maior e mais elaborado, na luta para preservar o poder em face das contestações.” (op. cit. p. 117).   

“Quando o poder político assume a mídia, manipula a opinião pública em causa própria.” (op. cit., p. 133). 


Observa-se que, nesta perspectiva, não se abre possibilidade para que os detentores do poder tivessem, ainda que eventualmente, um conjunto de ações legítimas e de valores e princípios que buscam, ainda que por meio do “monopólio” do Estado, implementar como motivo de representação de um consenso obtido pela maioria politíca, ou de respeito às minorias políticas.  O autor também se posiciona de maneira a delimitar, apenas em uma ocorrência específica, a tese de manipulação como função precípua de manutenção de poder: 


“Há igualmente menos liberdade no Brasil, em que a insegurança jurídica e a quebra de privacidade são marcas do governo do PT e de hoje, a partir do STF, em que 7 dos 11 ministros foram escolhidos pelo partido de Lula. O PT, quando esteve no poder, foi pródigo em patrocinar operações cinematograficamente intimidatórias contra os cidadãos, a ponto de se ter chegado – segundo a imprensa –, num único ano, a 409.000 escutas autorizadas pela justiça, com desmentidos não convincentes por parte das autoridades, que jamais apontaram o número verdadeiro de escutas.” (op. cit. p. 117-118).   


Nisto Dr. Ives revela ter um posicionamento dentro do espectro político-partidário. Pois se a breve teoria do poder se aplica a uma lógica inerente à natureza humana, não se poderia descartar que, no governo seguinte, essa redução da liberdade tenha se mantido sob outras vestes ou por meio de outros instrumentos. E de outro modo: se a manipulação é inerente à atividade dos governos, como explicar, então, que outros governos não tivessem proliferado um similar monitoramento e escutas de indivíduos que poderiam produzir contestação? Centrando a crítica de sua análise apenas em um dos partidos que ocupou o poder, o leitor se pergunta se deve ou não estender essa inferência. 


Parece importante notar, entretanto, que na organização dos capítulos, Dr. Ives parece preocupado em anotar certos elementos que são indispensáveis para a saúde de uma democracia, tais como as leis, a contestação, a ética, o empreendedorismo, e assim por diante, não raro sustentando a defesa da democracia como o melhor sistema político, e denunciando os vícios dos regimes autoritários, ou da democracia construída sobre atos demagógicos e concentração de riquezas nas mãos dos detentores do poder, ou de seus amigos. 


A importância da lei e da justiça 


No capítulo em que trata da lei como redutora do poder, após resumidamente recordar a teoria do Direito em limitar o poder e a obra da divisão tripartite entre Executivo, Legislativo e Judiciário, o autor afirma que “esta evolução da importância da lei como fator de geração do poder e dele inibidor, à evidência, não poucas vezes é desmentida pela prática, pois, como o poder não admite vácuos, sempre que alguns o conquistam e verificam que podem ultrapassar os limites da lei posta, certamente o fazem.” (op. cit., p. 65). 


Apesar de conceder que a Constituição de 1988 no Brasil produziu estabilidade política e manteve razoável equilíbrio no sistema democrático, ele conclui que “Se o conseguirem [ultrapassar os limites da lei], o fator inibidor da lei desaparece, dando início a este fenômeno permanente na história da humanidade: o surgimento de ditaduras e ruptura das instituições por aqueles que adquirem a força necessária para fazê-lo.” (op. cit., p. 66).  Para Dr. Ives, os registros da história de Roma evidenciam que a obtenção dessa força acumulada para transpassar a lei ocorreria por meio da outorga de benefícios para aliados e os soldados – antes de ser assassinados por seus aliados, “pela nomeação de um novo general imperador” (op. cit. 67). A lei, na reflexão deste livro, parece tão relevante , ele alega, quanto a prestação de serviços públicos: “só ocorre quando há interesse dos detentores em criar imagem favorável à sua atuação” (op. cit. p. 67). 


Neste ponto, Dr. Ives seria vencido por Kelsen: este alega necessária a expansão do conceito de Direito para solucionar casos difíceis, como a punição dos informantes alemães, ou de crimes para os quais, na época da II Guerra Mundial, não havia lei (o problema nulla poena sine lege). Para um positivista tradicional, seria impossível aplicar uma punição a alguém que tenha cometido atos imorais, mesmo monstruosos, se não houvesse uma lei da qual se pudesse aferir a ilegalidade de seus atos. Nesta linha Hart argumenta que, se considerarmos que o Direito (ou jurisprudência) incorpora práticas pela persistência e continuidade de elementos morais, é possível introduzir uma limitação às condutas, ainda que tivessem sido suspensas as leis que coibissem atos monstruosos (HART, Herbert. O Conceito de Direito. Oxford, Oxford University Press 1961, p. 227-8). Para o efeito desta argumentação, e de sua aplicação prática, a questão da lei haver sido ou não formulada pelos detentores do poder foi irrelevante.


Dr. Ives passa então a discorrer sobre a lógica do exercício do poder conforme a natureza e o interesse exclusivo do governante, cenário dos confrontos entre os que disputam o poder. 


Anteriormente, quando o autor aborda Rawls, apresenta a sua visão de que “ao idealizar uma sociedade perfeita e estável, fala que só é possível obtê-la a partir do diálogo entre cidadãos razoáveis, que compreendam as divergências, respeitem as opiniões alheias, afastem as teorias abrangentes e convivam com teorias conflitantes, sendo que um tal consenso decorreria da razoabilidade dos membros, que comporiam uma sociedade organizada.” (op. cit., p. 119). No entanto, Dr. Ives parece achar a  teoria de Rawls pouco aplicável, “visto que a multiplicidade de correntes, anseios, conhecimentos, interesses, etnias, níveis sociais tornam cada vez mais difícil uma teoria de consenso e cada vez mais comum a divergência e a necessidade da superposição dos interesses públicos”. 


Este, a meu ver, é o trecho mais complicado de sua obra, a ser analisado. O autor não acolhe a hipótese de Rawls, de que numa sociedade perfeita e estável, é possível haver diálogo entre teorias diferentes e conflitantes; ele descarta essa proposta, e insiste que seria necessária uma teoria de consenso, e que a divergência, pela multiplicidade de interesses, sabotaria os interesses públicos. A meu ver, Dr. Ives não compreende possível que um comunista, interessado na ditadura do proletariado e no monopólio do Estado por um único partido, possa dialogar com alguém de teoria conflitante, como um monarquista, interessado em mecanismos sucessórios de uma aristocracia dirigindo o Estado; sem que para isso houvesse antes uma teoria de consenso, única, que dispusesse eles pudessem respeitar-se mutuamente a existência um do outro, compreendendo as diferenças, e estabelecer um diálogo.  


Nesse cenário, recusando Rawls, para entendermos a cosmologia de Dr. Ives, ele constrói esferas separadas nas quais os detentores do poder atuam: governo, de um lado; e a sociedade, de outro. Esferas, sublinhe-se, para ele contrapostas. Na humanidade mais evoluída, ele presume que a sociedade evoluiria “por conta própria, mais ou menos aceleradamente, quanto mais ou menos os governos atrapalhem sua evolução, procurando dela tirar o proveito possível para suas benesses palacianas. O desenvolvimento cultural, econômico e social de um país é, pois, promovido mais pela sociedade do que pelos governos” (op. cit, p. 230). Sua visão se reflete assim quando afirma que, para os detentores do poder “servir ao povo é apenas um elemento colateral no seu esforço por dominar, sua capacidade criativa para o progresso da ciência e da sociedade é pequena” (op. cit, p. 230).  


Seria então esta a explicação para o melhor êxito ou maior fracasso dos governantes, ao se tornar detentores do poder, deixar a sociedade livre, deixando de interferir na vida privada dos cidadãos, na maior medida possível? 

Mas se notaria nesta possível explicação ausente o problema da representatividade. Na sociedade cultural e empreendedora (capítulo XXIII) não poderíamos deixar de enxergar que, como em todos os tempos, existe um vínculo de delegação entre principal e agente. Esse vínculo de confiança e sincronicidade que se estabelece entre governante e governados está assinalado na epígrafe desta resenha: “Tal o juiz do povo, tais os seus ministros; tal o governador da cidade, tais os seus habitantes. Um rei privado de juízo perde o seu povo, as cidades povoam-se pelo bom senso dos que governam.” (Eclo 10, 2-3).


Não parece prudente descuidar que os atos de quem governa se tornam muito mais visíveis do que os atos do cidadão comum e que, pelos instrumentos de autoridade que conformam o poder, têm maior impacto como referência de conduta para quem é governado. Se Ben Sirá nos alerta sobre a desgraça que atinge o povo, quando o governante perde o juízo, São Tomás de Aquino também nos recorda, em sua carta para o Rei de Chipre, que um rei tirano “serve para expiar os pecados do povo”, analisando o sentido inverso dessa relação de representatividade que constitui o governante. 

A consequência de pensar com Helmut Khun (p. 235), definindo o Estado como “uma mera estrutura de poder”, e defendendo que o Estado deve interferir o menos possível na sociedade, é o isolamento dos governantes em uma casta estatal que vive alheia à realidade de quem é governado. Talvez o enfraquecimento desses laços pudesse justamente explicar a razão pela qual burocracias estatais crescem à revelia dos interesses da sociedade, produzindo a hipertrofia burocrática que Dr. Ives denuncia.


Poderia-se argumentar o contrário, naturalmente: que a maior exposição e convívio entre governantes e governados enseja espaço para a criação de novas demandas; e que, para permanecer no poder, governantes busquem cada vez mais aumentar sua capacidade de oferecer e restringir os recursos que retira da sociedade, para governá-la. Se analisássemos em maior profundidade os dados que Dr. Ives levanta a propósito desse ideal afastamento do Estado, de que no Brasil o governo retira 36% do PIB, enquanto nos países da OCDE, temos EUA e Coreia do Sul em torno de 24%, Japão 29%, México 19% (dados de 2012), veríamos que nem sempre essa proporção vem ao mesmo pretexto. O orçamento norte-americano se direciona principalmente ao setor de Defesa, diferentemente dos países que têm maior carga tributária voltada a produção de bem-estar e benefícios às famílias, como os países nórdicos.  A Suécia teve um gasto público médio de 53%, de 1993 a 2023 (tendo alcançado 70%, em 1993), tendência observada também em outras democracias de bem-estar. Na Rússia, também um país desenvolvido, temos 34 a 36% de orçamento do governo em relação ao PIB, entre 2012 e 2017. O que se quer dizer com isso é que esses dados agregados sobre a proporção do PIB apropriado pelo Estado não revelam necessariamente os principais aspectos de sua boa ou má organização, nem se pode inferir desse dado sobre a qualidade da relação que o Estado estabelece com seus habitantes.    


Sobre o serviço público, tenderia a ter uma visão diversa, também neste ponto, de Dr. Ives. Ele afirma que “Tenho procurado mostrar que servir é tão somente um efeito colateral da busca do poder” (op. cit., p. 94).  E ainda: “o número de pessoas que prestam concurso público, objetivando sua segurança pessoal, é cada vez maior, percebendo-se que o ideal de servir é minoritário. Tal mentalidade que termina contaminando toda a sociedade certamente leva a comunidade a justificar o detentor do poder, pois gostaria também de fazer parte daquela elite que comanda e obtém as “benesses” do comando” (op. cit., p. 88.) 


Busco amparo nas evidências. Em primeiro lugar, a estabilidade no serviço público é com frequência uma miragem afirmada por quem não faz parte do serviço público. Servidores têm a estabilidade abalada e muitas vezes são afastados a atividades preteridas, sobretudo quando discordam da política que implementam, ou incomodam detentores do poder, ou se interpõem entre os predadores do bem público e o interesse do cidadão. Além disso, há de se recordar que o número de ocupantes de cargos de confiança que ensejam gratificações no serviço público é pequeno. Somos ainda muito majoritários, o volume daqueles que não têm benefícios e que se voltam apenas para o exercício de função pelo público, tendo como chefe os cidadãos, e não os detentores do poder. 


Quando o governo federal convocou todos os servidores públicos que quisessem manter as gratificações em cargo de confiança, ou obter nomeações, a preencher a Esplanada dos Ministérios contra medidas sanitárias restritivas, ou em alocução durante as celebrações de 7 de setembro, é verdade que praticamente todos os servidores com DAS compareceram. Contudo, os servidores contemplados com DAS e medalhas são uma minoria. Muito mais substantivo número desaprovou a convocatória a celebrar atos públicos ou a data nacional nesses termos; e permaneceu em casa. Um grande e maior volume de servidores ficaram perplexos com os gritos de fanatismo por um governante em seu cargo, quando hostilizou em público medidas sanitárias recomendadas pelo seu próprio governo, ou insultou autoridades do Poder Judiciário, afirmando que não haveria eleições, se as eleições não se conformassem à sua vontade, ou que as urnas seriam fraudadas, se não anunciassem a sua vitória no pleito.   


E uma terceira razão haveria, ainda, para preferir alternativa à visão geral negativa que se tem da estabilidade do serviço público. Pois o próprio autor, citando Confúcio, não inclui nenhuma ressalva à ideia –  que ele qualifica de linear – de que “sendo o patamar da sabedoria superior àquele do desejo de possuir dinheiro ou comando, a ambição do saber ultrapassaria a ambição pelo poder”. Ora, isto é especialmente verdadeiro se observamos as carreiras de Estado. Nestas carreiras relativamente bem remuneradas, também nas universidades, e nas quais se concede a autonomia de conduta, ainda existem servidores que põem termo à própria vida ou pedem demissão, quando se veem injustamente acusados, ou quando cometem equívocos. Nessas carreiras também se encontram aqueles que estão menos preocupados com as benesses e mais interessados em influir e tomar parte nos bons resultados de serviço, pelos quais se julgam a si mesmos. Dentro do Estado, entre os servidores de carreira, a coleção de boas histórias, de folclore e de bons feitos que leva o servidor de carreira a preencher sua satisfação e fazer parte dos melhores círculos de amizade, onde encontram o repouso do convívio afetuoso e fazem discípulos.   


Religião e poder no macrocosmo


No livro, senti falta da perspectiva religiosa do autor em sua leitura do mundo. Há uma citação de Eclesiastes sobre a vaidade (op. cit. p. 121), que o conduz a uma valiosa pérola de sabedoria: “A vaidade do homem no poder, portanto, torna quem o exerce pouco confiável” (op. cit., p. 125). Mas as religiões apenas são mencionadas brevemente, e sua importância é como instrumento de análise histórica, como expressão de algo primitivo (p. 200), ou como como elementos distintivos de civilizações, como ele recorda na obra de Toynbee (op. cit., p. 201).


Cabe perceber uma especial menção recorrente de Dr. Ives sobre a obra de Thomas Woods, “Como a Igreja Católica construiu a Civilização Ocidental”, um best seller entre os monarquistas. O autor tem também uma obra especialmente dedicada a esse tema, elaborada em 1993, "O que é o Parlamentarismo monárquico". No entanto, a contribuição da Igreja não se deu apenas no domínio científico ou universitário. Sabemos que a colonização de continentes e construção de diversos países se deu por obra, regulação e efeito de ações políticas no seio da Igreja e por iniciativa de monarcas cuja fonte de poder era atribuída a Deus. Refiro-me, portanto, ao valor da religião que excede o mundo material e os regulamentos dispostos pela Igreja. Boa parte do desenvolvimento afirmativo das sociedades está amparado em certos conceitos de bem-estar social relacionados a princípios morais, expressões e obrigações religiosas, e também detrás disso acena uma abertura ao que é desconhecido e não pode ainda ser explicado, postura essencial para o diálogo e desenvolvimento político das sociedades humanas. 


As ações de descobertas, investimentos, reformulações da sociedade e dos sistemas políticos têm na história, é certo, menor enfoque do que a guerra e as disputas políticas. “toda história humana começa e termina na guerra”, Dr. Ives afirma em seu livro (op. cit., 202). Mas nem por isso o registro dos tempos de paz deveriam ser menos importantes. Para ele, “O poder é sempre a causa de lutas intestinas e guerras externas. Na origem do poder está a origem das guerras, talvez o mais admirável elemtno dialético de seu exercício, visto que toda a guerra gera um período de paz, até que nova tensão, valorada pelo governante, possa profocar nova guerra e um novo tempo de paz, num processo hegeliano dinâmico.” (op. cit. p. 203).  


De fato, o exercício do estudo histórico geralmente tende a privilegiar o registro das guerras e conflitos de poder no mundo e dentro de cada país. Algo parece contra-intuitivo, contudo, em se desconsiderar que o comércio sempre preferiu tempos de paz, e que certas regiões, como a América Latina, tiveram considerável êxito em manter longos períodos de paz, a despeito dos conflitos internos domésticos. Há também os acordos, alianças e capitulações abundantes no registro histórico que demarcam e delimitam os confrontos: não há guerra que não tenha terminado. Não consideraria estes elementos menores do que a a memorabilia que ele traz para afirmar uma visão de que a História seria o registro dos conflitos. 


Talvez outro elemento faltante numa análise sobre o exercícioe dinâmica do poder seja a motivação daqueles que buscam o poder: em geral, as disputas ocorrem para promover mudanças. Essas mudanças talvez sejam mais importantes do que os deslocamentos de efetivos militares, postos e sítios estratégicos, ou do que as fricções que um ímpeto de mudanças enseja. Diversas mudanças foram sendo feitas no governo e na sociedade sem que fossem necessárias as guerras e conflitos armados, e desde que se instalaram as repúblicas como forma de governo, essas mudanças são debatidas nos parlamentos e efetuadas paulatinamente. Não raro essas mudanças buscam fazer convergir a realidade a um conjunto de princípios morais que são afirmados em um contexto religioso. 


Mas esta realidade quotidiana não é incluída no livro, já que isso enfraqueceria o argumento principal, relacionado ao poder como expressão de força. O resultado desta perspectiva parece ser um realismo exacerbado, voltado para o confronto entre forças políticas, que exclui o motivo dos atores para aceitar o risco de uma empreitada voltada para exercer domínio, e boa parte da realidade em que vivemos.  


Sem embargo, a visão de Dr. Ives não se encerra na breve teoria que aduz de suas observações. Ele também recolhe, em uma nota de rodapé, sua visão mais antiga e afirmativa, que remedia a lacuna de análise sobre a representação e delegação: “o exercício do poder será tanto mais duradouro quanto mais se fizer a conjunção entre as formas de condução dos governantes e as aspirações populares, na medida em que estas forem orientadas para a vivência de valores e normas maiores, de forma perene, encontráveis apenas no Direito Natural.”(Estudos sobre o amanhã, Caderno n. 2, p. 56). 


O elemento humano


Também o elemento humano cede espaço para a força dos argumentos gerais. Tenho a impressão de que as entranhas do poder não se limitam a essa camada muscular do poder, em que se produzem os movimentos e confrontos. Dentro de qualquer sistema político, os indivíduos se movem por algo que vai além da sobrevivência. Dr. Ives elimina da sua breve teoria o elemento humano: “É que a ética exige comportamentos que nas lutas, muitas vezes selvagens, pela conquista de governo levam, até com razoável conforto de consciência, a pensar que os fins justificam os meios adotados, embora os fins, bons em teoria, reflitam apenas a identificação do detentor do poder com o próprio poder” (p. 103).

Dr. Ives também afirma assim: 


Carlos Magno, entretanto, conseguiu impor sua liderança aos maiores [senhores feudais] do reino, mas João Sem Terra, quatrocentos anos depois, foi combatido pelos barões que impuseram o primeiro grande modelo constitucional da atualidade, com a famosa Magna Carta Baronorum. O interessante é que esta luta pelo poder, em que se obteve uma convivência conveniente para ambas as partes, foi tida pelos constitucionalistas modernos como a primeira grande demonstração da força popular dos tempos atuais, exteriorizada pelos barões, sendo o rei o governante que se curvou perante sociedade. Em verdade, os barões representavam seu próprio poder, tendo sido, nada obstante a qualidade para a época, um texto que os fortalecia e não o povo, vale dizer, fortalecia os detentores do poder feudal na sua luta de não submissão ao rei.” (op. cit., p. 80-81)

 O problema de eliminar o elemento humano da história é perder a riqueza dos eventos que conduziram a esse resultado. Plutarco escreveu certo dia: “O mundo do homem é melhor capturado através da vida dos homens que criaram a história”.


Foi o pai do rei São Luís IX que, inspirado pelo poema que lhe foi dirigido sobre o modelo de governo justo de Charlemagne, escrito por Gilles de Paris, aliou-se com os barões contra o rei João Sem Terra. Ele, Luís VIII, o rei da França, garantiu a vitória dos barões – e obteve em troca de boa parte da França atual. Ele foi excomungado por causa disso pelo Papa Inocêncio III, o qual defendia a primazia de João Sem Terra; e tanto o Papa quanto João Sem Terra tiveram dupla morte logo após esse evento extremamente traumático, em 1216. Recorde-se, de modo parecido com a tríplice morte de Demolay, Filipe IV e do Papa Clemente V, em 1314, as quais também foram separadas por breve interstício.  Isso não impediu que posteriormente seu filho, São Luís, amigo próximo de São Tomás de Aquino, fosse canonizado. Mas o fato é que tanto a tese dos juristas de que a Magna Carta de 1215 seria prova do triunfo popular, quanto a tese de que os barões teriam conseguido o feito sozinhos, parecem pouco apuradas. Soube disto por intercessão de Tomás de Aquino. Carlos Magno também deveria ser canonizado, pelos seus excelentes serviços e bons préstimos em haver registrado bons valores de governo.  O ponto, retornando ao registro histórico e à resenha, é que foram os valores e princípios de governo justo de Charlemagne que, traduzidos nos versos de um formidável poeta, instigaram o Rei Luís VIII à ação e resultaram na Magna Carta de 1215. São Charlemagne e Gilles de Paris: uma grande dupla.


Descendo, contudo, ao elemento objetivo. Nessa teoria que sobrepuja o elemento humano e estabelece uma norma geral para todo espaço de poder, não parece haver escapatória ou contrafactual: por mais um governante afirmasse certos valores distintos dos demais governantes,  e não estivesse interessado em acumular mais poder, ou em se perpetuar no poder, ou em distribuir benesses, isso não significaria nada, dentro da lógica proposta: seria sempre poder como finalidade do poder. E se a tese estiver equivocada? É preciso assumir, ainda que em hipótese, que hipótese, assumida temporariamente, possa não se verificar. Pois se não for possível cogitar as coisas fossem de outra forma, não estaremos no domínio de um conhecimento objetivo, mas simplesmente no domínio de uma impressão que não pode ser questionada. 


Quanto as valores e princípios de justiça, como vimos nesta análise de caso, dificilmente significariam nada. Muitas vezes significam tudo: se examinarmos o registro bíblico, onde se guardam os elementos que conduzem a vitórias em batalhas, é o fardo de carregar um preceito de Justiça que alimenta a vontade de lutar e vencer, ainda que se conte com um elemento de imprevisibilidade e novidade. 


É a clássica memória de quando Davi vence Golias, valendo-se de uma funda, do seu conhecimento de pastoreio; quando Absalão, o filho revoltado de Davi, fica preso pela cabeça nos galhos de uma árvore, suspenso entre o céu e a terra, enquanto a mula que ele montava seguia em frente, e é vencido pelas tropas que defendiam seu pai. Poderíamos nos contentar com a explicação de que Davi reunia seguidores e decidia seus movimentos com base em um instinto de sobrevivência, por causa da perseguição de Saul. Mas sem a atitude de maior compromisso com a Justiça e com a lei divina, ele não haveria encontrado nem ampliado o serviço de seus colaboradores. E a crença de que ele havia encontrado favor junto a Deus não vinha apenas de suas vitórias militares: vinha sobretudo de sua genuflexão e oração junto a Deus, rendendo ao mérito do favor divino o bom resultado de suas batalhas. 


Não se trata de um apelo a forças sobrenaturais, nem a uma explicação deus ex machina, mas a realidade que leva um povo a tomar certos governantes como seus ungidos, como aqueles que carregam uma missão contra a lógica do poder como finalidade.  A história do rei militar mais bem sucedido de Israel é didática sobre a importância da Justiça. Naquele tempo, era justo quem não celebrava a queda dos governantes, usava de misericórdia para com os adversários e mantinha um profeta responsável por corrigir e deixar o governante com a consciência limpa para bem governar. Faço uma compilação talvez um pouco longa, mas vale o intento, para entender um modelo de bom governante que não saiu de voga ainda, em milhares de anos:


“Davi disse-lhe: “Como não receaste estender a mão para matares o ungido do Senhor? E chaando um de seus moços, Davi ordenou-lhe: “Vem aqui e mata-o!” (2 Samuel 1, 14-15, sobre a punição contra quem matou Saul, seu inimigo) “Todo o povo ouviu e aprovou; tudo o que o rei fazia, parecia bem aos olhos de todo o povo. E todo o povo, todo o Israel soube, naquele dia, que o rei não tivera parte na morte de Abner, filho de Ner” (2 Samuel 3, 36-7, sobre o lamento de Davi pela morte de um adversário). “Aqui estamos, nós somos teu osso e tua carne. Já no tempo anterior, quando Saul era rei, tu eras quem saía e voltava com Israel, e o Senhor te disse: “Tu apascentarás meu povo Israel, tu serás o príncipe de Israel. Assim, todos os anciãos de Israel foram até o rei em Hebron” (2 Samuel 5, 1-3, sobre a preferência dos anciãos por um rei que se relacionava bem com os povos vizinhos e que não se dedicasse a confrontos com os inimigos ou adversários).  “Davi percebeu que o Senhor o confirmava como rei sobre Israel e havia exaltado o seu reinado, em favor de seu povo Israel” (2 Samuel 5, 12, sobre os presentes enviados pelo rei de Tiro). “Davi consultou o Senhor, dizendo: “Devo subir contra os filisteus? Vais entregá-los às minhas mãos?” (2 Samuel 5, 19, sobre as consultas que Davi fazia a Deus, antes de entrar em uma batalha). “Oza andava ao lado da arca, e Aio andava à frente dela. Davi e toda a casa de Israel dançavam diante do Senhor com pleno entusiasmo, ao som de cantos e cítaras, harpas e pandeiros, sistros e címbalos.” (2 Samuel 6, 4-5, sobre a ocupação do trono, e transporte da arca da aliança, com as leis judaicas entregues por Deus a Moisés). “Tua casa e teu reino estarão para sempre diante de ti; teu trono será estável para sempre.” (2 Samuel 7, 16, sobre o fim da opressão dos ímpios, pela constituição de juízes que aplicavam a lei sagrada, a quem Davi protegia). “E o Senhor dava êxito a Davi em tudo quanto prosseguisse. (…) O rei Davi consagrou-os ao Senhor, junto com a prata e o ouro que havia consagrado de todas as nações por ele sujeitadas (…) E o Senhor dava êxito a Davi em tudo quanto prosseguisse” (2 Samuel 8, 6; 11; 14), sobre a vitória sobre os filisteus, que lhe haviam antes oferecido asilo, após subir ao trono; e sobre os arameus, que aceitaram seus impostos, povos que consagrava, após a derrota deles). “Davi retomou: “Não temas, certamente demonstrarei misericórdia para contigo em consideração a Jônatas, teu pai. Vou restituir-lhe todos os campos de Saul, teu pai, e tu sempre comerás o pão da minha mesa”. Prostrando-se, Meribaal disse: “Quem sou eu, teu servo, para que te ocupes com um cão morto como eu?” (2 Samuel 9, 7-9, sobre a misericórdia que teve para com o neto de Saul e filho de Jônatas, apesar de ter sido perseguido por seu avô, por lembrar da amizade de Jônatas, e entender que graças à desventura foi feito rei”. “Davi disse a Natã: “Pequei contra o Senhor” (2 Samuel 12, 13, sobre a censura do profeta Natã pela morte de Urias, e submissão do rei à lei divina, acatando, da voz do profeta, como punição, a morte do primeiro filho que teve com a esposa de Urias). “Viva a tua alma, senhor meu rei! É impossível escapar, nem pela direita nem pela esquerda, de tudo o que disse o senhor meu rei. (…) mas tu és sábio, meu senhor, assim como um anjo tem a sabedoria de Deus, para entenderes tudo o que acontece na terra.” (2 Samuel 14, 19, sobre a capacidade de Davi em ver as pessoas sendo utilizadas por um de seus adversários, para atingi-lo). “Qualquer que seja a decisão que o senhor nosso rei tomar, os teus servos estarão contigo” (2 Samuel 15, 15, sobre a decisão de esquivar-se dos ataques de seu filho Absalão). “Chegando Davi ao cume do monte, no lugar de adoração a Deus, veio a seu encontro Cusai (…)” (2 Samuel 15, 32, sobre o apoio inusitado de um agente duplo que também tinha fé fervorosa em Deus, o qual garantiu a derrota de Absalão). “Deixai-o amaldiçoar, pois o Senhor mandou. Talvez o Senhor leve em conta a minha miséria, restituindo-me a felicidade em lugar da maldição de hoje” (2 Samuel 16, 11-12, sobre as maldições de Semei que Davi permite, ao se retirar ao deserto, fugindo da perseguição de seu filho, quando indagado por Abisai se o rei lhes permitia cortar a cabeça de Semei). “Farei o que for melhor aos vossos olhos” (2 Samuel 18, 4, sobre a submissão de Davi a suas tropas, quando lhe quiseram proteger em batalha). “Se eu tivesse traído minha consciência – e nada fica oculto ao rei – tu mesmo te porias contra mim.” (2 Samuel 18, 13, sobre a recusa de um homem em descumprir ordens de Davi). “Levanta-te e vai falar ao coração de teus servos. Juro-te pelo Senhor: se não saíres, ninguém ficará contigo esta noite (…). O rei levantou-se e sentou-se à porta. Anunciaram a todo o povo: “O rei está sentado à porta”, e todas as tropas apresentaram-se diante do rei”. (2 Samuel 19, 8-9, sobre a exigência dos servos que salvaram Davi do ataque de seu filho, Absalão, de que os governasse). “Davi mandou dizer aos sacerdotes Sadoc e Abiatar: “Falai aos anciãos de Judá: Por que seríeis vós os últimos a trazer o rei de volta à sua casa? Vós sois meus irmãos, sois meu osso e minha carne. (…) Assim, Davi ganhou o coração de todos os anciãos de Judá, como se fossem um homem só”. (2 Samuel 19, 12; 15, sobre a fidelidade da aliança com os anciãos e reinclusão dos que antes deixaram de lhe apoiar).         

 

  Muitos líderes daquele tempo também buscavam o poder como recurso de sobrevivência, mas apenas Davi foi ungido pela tribo de Judá. Teve ainda reinado longo: 33 anos. A história de Davi se enquadraria dentro da breve teoria do poder de Dr. Ives Gandra? E cogitar isso teria alguma relevância, já que o registro é bíblico, feito pelos escribas do próprio rei Davi, e não registro histórico, feito por historiadores neutros?  


Quanto à primeira pergunta, parece que, da leitura que fizemos sobre os atributos e motivos que levaram Davi ao trono, sua história não se enquadraria dentro da perspectiva pessimista de Dr. Ives Gandra; e quanto à segunda, sim, seria importante, ao ponderar se uma teoria nos serve, verificar se ela se aplica à epítome de um bom governo que ficou registrado como modelo. O registro do reinado de Davi não poupa descrever as intrigas e erros do rei, de maneira que provavelmente foram instruídos a fazer um registro íntegro. Por mais eivado de revezes, o reinado de Davi parece sumamente importante para compreender o que funciona e do que não funciona para ter poder de decisão sobre o povo e manter-se em um trono, no governo que o constituiu como líder supremo. 


Se tomarmos o registro bíblico como fidedigno, constataremos que não foram as vitórias nas batalhas, nem a maior força militar os fatores que concederam vitórias nessas batalhas, nem uma relação de domínio. Uma relação mística de Davi consultando a Deus o que fazer nessas batalhas, a amizade com os vizinhos, o bom trato com os inimigos em batalha e a abertura de sua alma para estabelecer uma relação completamente sincera com os seus colaboradores: esses eram os fatores que lhe garantiam a colaboração dos seus apoiadores e sustentação no trono, o lugar de comando máximo (“somos teu osso e tua carne” (perfeita relação entre governantes e governados); “viva a tua alma!” (transparência da amizade sincera);  “entusiasmo” (agenda positiva da lei judaica), “demonstrarei misericórdia” (restituição do que é devido); “vai falar ao coração de teus servos” (visão de futuro); “ganhou o coração de todos” (fidelidade), dentre outros aspectos). O trono, na cultura e religião judaica, não é apenas um lugar de decisão e poder, mas de maior proximidade e amizade de Deus, quem tudo controla e comanda na Terra. 


Os demais governantes que se pautaram por uma visão supostamente realista, por abordar apenas os elementos de força e domínio, privilégios e corrupção, não conseguiram se manter no poder, nem usurpar o trono de Davi. Eu deduzo que tiveram pior destino, foram governos breves e instáveis, porque não conseguiram incluir na equação política o mistério da ação divina, como Davi incluiu, e a submissão à lei divina. A submissão à vontade divina, ao que é imprevisível, permite aferir melhor a realidade completa, os limites para a ação humana e aferir os motivos pelos quais se constituem os governos.


A aplicação da teoria de Dr. Ives sobre o poder, na realidade brasileira 


E quanto ao cenário atual brasileiro? A teoria breve do poder de Dr. Ives Gandra se aplicaria bem? Parece que sim. Mas se aplica bem em uma realidade na qual os atores políticos observem essa perspectiva incompleta, de que o poder seria constituído por questões de força, sobrevivência e domínio. E não é isto que o autor propõe? 


Sim e não. Sim, porque observando a realidade brasileira, Dr. Ives infere muito bem sobre a motivação dos atores políticos que brevemente se sucedem nos postos de comando. E ao mesmo tempo não, porque não se dedica a apurar o que poderia ter contribuído para uma história diferente, nem discerne os fatores que levam a governos mais bem sucedidos, dos piores, que desembarcam em tirania e ditaduras. 


Em pontos circunstanciais, Dr. Ives enxerga as falhas do governo do PT, mas não encontra que essas falhas, presentes em qualquer outro governo, teriam o mesmo efeito de abreviar o poder de comando. De outro modo, seria irrealista negar que, tendo ocupado 5 mandatos, desde a redemocratização, apesar de um deles haver sido abreviado em 2016, o PT obteve uma maior longevidade no poder. Note-se, ainda, que abreviou-se o quarto mandato do PT quando deixou de observar certos parâmetros que encontramos no reinado de Davi, de congregação com os adversários, após sua capitulação.  De todo modo, a abreviação agrega evidência sobre os fatores por detrás da maior longevidade: o presidencialismo de coalizão implica melhores resultados quando há capacidade em incluir adversários na formação de governo; e não quando há uma redução do Estado à lógica de acumulação de poder.  


Além disso, o foco na redistribuição de renda e no discurso de justiça social não deveria ser subestimado: o discurso de mudança, de respeito às lei e a insistência em políticas redistributivas conformam um motivo importante para conferir a legitimidade de um pleito. Não são apenas artifícios, ao ver do povo, pois as palavras de um governante são, pela autoridade que lhe é conferida, os seus principais atos. As palavras podem endossar ou destituir a autoridade de quem implementa a lei, mas não se poderia dizer irrelevante que a implementação de uma renda mínima foi algo substantivo na visão dos governados. 


A teoria de Dr. Ives se aplica bem, como argumentamos, aos governos que não escapam da perspectiva do poder como finalidade – e o trecho em que ele recorda as tramas de assassinato se instalaram em Roma, quando há muita distribuição de benefícios a aliados, chega a ter a precisão de um profeta. 


Para os que não cogitam o exercício de um governo seja produzir bem-estar dos governados, efetivamente, 


“o primeiro objetivo é a desmoralização do adversário perante aqueles que podem influenciar a sua conquista, ou através do veto, ou através da força, este processo depreciativo do adversário implica necessariamente a utilização de armas, na melhor das hipóteses, condenáveis pela ética e que são sempre dificilmente enquadráveis nas normas gerais de qualquer regime jurídico, mesmo totalitário. Em outras palavras, a compatibilização entre poder e ética, na filosofia e no direito, não se reflete, infelizmente, no comportamento dos princípios desta luta, em que o mais forte prevalece, e que torna significativos os versos de Rotrou: “todos os crimes são belos quando o trono é o preço” (op. cit., p. 103-104, quando Dr. Ives Gandra cita Carl Schmitt, o jurista ideólogo do regime nazista).  


Se bem poderíamos encontrar nisto talvez uma incompatibilidade intencional com o que sabemos e é de amplo conhecimento. Kelsen foi superior a Schmitt, tendo sido instalados nos sistemas judiciários dos países europeus os sistemas de controle e, nomeadamente, as cortes constitucionais; e, em Nuremberg, os nazistas foram enforcados, dos que não fugiram para a América Latina.  Como ignorar que a doutrina da força e da agressividade sustentadas pelos nazistas e seus ideólogos foi motivo da perdição deles? Dr. Ives Gandra menciona Kelsen em duas notas de rodapé (op. cit., p. 86 e 151), e recorda a diferenciação de normas, quando Kelsen propõe normas de sanções sejam as primárias e as de conduta, secundárias. Mas não aprofunda sua concepção sobre a consciência comum do Estado, nem o esforço notável com que Kelsen, elaborando uma concepção jurídica própria, refutou o panfleto político de Schmitt.   

Poderíamos concluir, então, que o Dr. Ives Gandra sucumbe a uma cosmologia maquiavélico? Se bem Maquiavel nunca escreveu que os fins justificam os meios. Ou então ele sucumbe ao realismo como doutrina política resumida à busca do poder como expressão de força? Não. E este me pareceu o resultado mais aprazível, da leitura de seu livro. 


Por mais Dr. Ives nos apresente a sua visão pessimista de que a história da humanidade é a história das guerras, ou de que o poder se resume a um confronto de forças sem nenhuma ética possível, o seu livro é um vasto campo de embates épicos entre o bem e o mal. Em diversas oportunidades, em seu livro, ele afirma a democracia como um bem frágil, a ética como um fator de derrota, as leis e as boas políticas públicas como subsídios dos idealistas e ingênuos… Mas existe uma linha tênue em que ele traça o seu pensamento – quase um murmúrio – de que não deveria ser assim. Ocasionalmente ele trouxe exemplos, ainda que rápidos, de que houve situações nas quais foi possível alcançar, nas democracias, um sistema mais estável e duradouro.  


De todo modo, tendo a pensar de um modo diferente: longe de conceder qualquer otimismo, apenas não excluo nem concedo menor importância às vezes em que as decisões políticas privilegiaram a ética e o bem-estar, ou as boas práticas de governo; não considero que as ocorrências positivas tenham tido menor impacto sobre a formação dos governos e a dinâmica do exercício do poder, limitando seus males. Do que vejo dentro do governo, há servidores empenhados no bem comum, se bem, é verdade, tantos tenham preferido os benefícios de afirmar o cinismo. Esses sobreviventes talvez não tenham o mesmo brilho, formação e fama dos grandes estadistas, mas têm um efeito tão poderoso sobre a máquina pública quanto uma vela no escuro: de flama frágil, pouca cera, mas muito bastante para dissipar a escuridão e fazer recuar os que gostam de que tudo permaneça no escuro.  


Mas o exercício de Dr. Ives tem muito maior mérito: porque se bem ele exclui do livro tratar desse cenário benéfico, em que o bem, a lei e a ética subsistem, mesmo assim ele não sucumbe à realidade terrível que descreve. A democracia, a Constituição de 1988 e os esforços para limitar os excessos de poder são trazidos ao longo do seu livro timidamente, ainda que se tenha, a seu ver, uma realidade dura como pano de fundo, a inércia de sistemas autoritários, a derrota dos bons valores como um destino inevitável. Ele descreve a musculatura do poder para demonstrar o quanto o poder é desprezível, quando se volta para si mesmo como finalidade. Pareceu-me, portanto, um escritor muito mais idealista do que eu, ou do que qualquer outro. 


Vejamos que a esperança e o valor do bem se faz presente detrás do mal que ele denuncia: “Quando uma pessoa despreparada alcança o poder, o estrago que pode fazer é muito maior do que os outros que o ambicionam. Quase sempre a violência e a desestruturação do país são as consequências de sua ação. E, decididamente, o presidencialismo facilita a tomada do poder pelos despreparados, com boa dose de demagogia” (op. cit. p. 141). Ora, o que Dr. Ives nos mostra defender, nessa porta entreaberta de um cenário desolador, é o maior valor de fortalecer a representação parlamentar e melhorar as exigências de formação daqueles que serão admitidos pelos partidos políticos como candidatos. Não conviria, portanto, tomar isoladamente em uma análise do seu pensamento os trechos em que Dr. Ives vai destapando os bueiros da República, mas ler também o que ele não diz, presumindo o que deve ser mais conveniente. 


Ideias inestimáveis, originais e úteis para a Ciência Política e para as Ciências Jurídicas


Acho digno de menção especialmente o Capítulo XXXII, “O pouco impacto da experiência histórica”. Dr. Ives afirma assim: 

“Os generais que se tornaram imperadores mediante o assassinato de seus antecessores permaneceram imperadores por curtos espaços de tempo, no século III d. C. , e não aprenderam a lição de cada um daqueles que os antecederam. Repetiram, com monotonia, os assassinatos na busca do poder. (…) Numa Teoria do Poder, a história deveria servir de lição para os governantes. No entanto, o poder é quase sempre tisnado pela experiência das pessoas que o assumem, ou seja, o egocentrismo, o autoidolatrismo e os defeitos inerentes àqueles que se consideram superdotados para governar e por isto, na sua autossuficiência, cometem erros já cometidos por outros, tanto maiores quanto maior for seu fascínio pelo exercício do poder. Como os alquimistas que acreditam que, pela renovação das mesmas experiências, um dia elas darão certo, os detentores do poder quase sempre se consideram acima da história e com capacidade de alterá-la, razão pela qual prescindem das experiências passadas, quando, na verdade, por ignorância, as desconhecem.” (op. cit. 228-229). 


Esta ideia de Dr. Ives, sobre a limitação do governante uma vez alçado ao poder de enxergar as variáveis intervenientes e determinantes sobre si mesmo me pareceram ir além do que a Ciência Política vem desenvolvendo na literatura de “path dependence”. 


Outro elemento que ele inclui em sua análise, e que frequentemente está ausente até mesmo dos melhores estudos, é o tributo. Afirma ele: 


“Apesar da análise do tributo, pelas diversas ciências sociais, não ter sido realizada de forma a manifestar a sua relevância, o certo é que, para efeitos do domínio e do poder, trata-se do mais importante elemento, com reflexos em cada uma delas. (…) O poder só se mantém por força do tributo, que certamente é relevantíssimo para que os governantes alimentem seus planos presentes e futuros de governo.” (op. cit. 214-5). 


Isto nada mais é do que o centro da crise mais recente entre os Poderes da República, sobre quem autoriza os gastos orçamentários, e como esses gastos orçamentários são distribuídos e, efetivamente, não encontramos ainda uma análise satisfatória enfocando a grande complexidade do Orçamento Público. Eu me recordo de uma tentativa neste sentido, para levar uma informação mais sistematizada em capacitação a jornalistas; e a análise apenas descritiva do orçamento do Ministério da Educação, muito bem delimitado dentro da Lei Orçamentária Anual, foi um exercício extenuante. 


Outra ideia sumamente relevante que Dr. Ives aborda é a de assimetria informacional. Mas diferentemente dos trabalhos técnicos nessa área, ele afirma o problema desde um hiato cultural que se produz na estrutura da democracia, impedindo a escolha íntegra dos governantes: “Há um nível permanente de diferenciação cultural, sendo que a maioria expressiva da sociedade não tem, mesmo nas mais organizadas, capacidade de aferir a complexidade do exercício do poder. A maioria é mais facilmente manipulável do que a minoria habilitada, que, todavia, muitas vezes, adere à própria manipulação na busca de benefícios decorrentes da aproximação com os manipuladores do poder.” (op. cit., p. 160). 


Neste trecho, o autor cria um novo critério, a manipulação (pela falta de contestação por opositores), para diferenciar diferentes tipos de governo: regimes democráticos, por assegurarem a liberdade de opinião a liberais e socialistas; regimes socialistas, ou democracias socialistas, que tendem a calar seus opositores; e ditaduras, regimes nos quais a manipulação é total. “A manipulação do povo estava, pois, no mundo dos fatos, dos detentores do poder, onde a verdade vale menos que a mentira alcandorada e as promessas superam as perspectivas de realização. Decididamente, o mundo dos valores não se compatibiliza com o mundo dos fatos, numa teoria realística do poder.” (op. cit., p. 161).   


Considero que Dr. Ives inova o pensamento político nessa área, assimilando as “mentiras alcandoradas” e as “promessas que superam perspectivas de realização” como fatos positivos, dois bens de capital político. No pensamento de Hannah Arendt, salvo melhor juízo, o falseamento da razão é um fato negativo para remover obstáculos à ascensão do poder, não tem valor de fato. 


Achei também particularmente relevante o desenvolvimento que faz do pensamento de Alvin Toffler, sobre os burocratas como “integradores do poder”. Dr. Ives afirma que “Nas ditaduras, os burocratas são integrados pelos detentores do poder. Nas democracias, são integradores do poder e, muitas vezes, decidem e dirigem mais que seus próprios detentores” (op. cit., p. 151). Esta diferenciação entre ditaduras e democracias com base no papel passivo ou ativo dos burocratas parece bastante útil para prevenir que iniciativas de instalação de uma ditadura venham a surtir efeito. Significa dizer: para prevenir a instalação de uma ditadura, conviria impedir que os burocratas sejam integrados, e gerar estímulos para que permaneçam sujeitos ativos, integradores. 


E por último, não deixo de notar que o autor nos brinda com uma reflexão sobre o efeito pervasivo da ideologia, problema para o qual não encontro resposta. Afirma ele: 


“Por que os ideais vitoriosos fracassam quando aplicados ao exercício do poder? Em primeiro lugar, porque aqueles que nunca tiveram poder, de repente, sentem-se detentores de um poder absoluto e percebem que, embora quase nunca tenham comandado, passam a poder fazer o que quiserem. Em segundo lugar, os contestadores e ideólogos, que conquistam o poder, têm como objetivo a eliminação daqueles que os contestam – no caso de uma ditadura – pela força; no caso de democracias, com processos que beiram a imoralidade e a exceção. Em outras palavras, por entenderem que a sua ideologia é a melhor, têm que eliminar os que com ela não comungam ou a ela se opõem” (op. cit. p. 135).  


Ora, este é precisamente um domínio que, transposto às ideias supremacistas, nos interessa resolver, para prevenir danos. Por que os ideólogos, uma vez no poder, voltam-se para o objetivo de eliminação daqueles que não comungam da mesma ideologia, e não simplesmente para a implementação de sua ideologia?  Quanto a neutralizar aqueles que se opõem, parece natural que se dedicassem a isso, se quisessem implementar a ideologia que propugnaram; mas mesmo assim se poderia questionar como explicar que esse esforço se tornasse o objetivo primário. Pois uma coalizão política vencedora, dotada de maioria, não teria que se preocupar com eliminação das forças opostas, já que, por um lado, as forças opostas foram vencidas, como minoritárias; e por outro lado, não teria que eliminar tampouco os que não comungam da mesma ideologia, presumindo que os que não comungam, por mais recusem a ideologia, não exercem forças contrárias. Contudo, efetivamente, a evidência de autofagia dos governos que se elegem por ideologias é abundante e notória, ao eleger como objetivo primário a eliminação das ideologias concorrentes dos vizinhos, ou mesmo de entes distantes.  


O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou, em certa entrevista, sobre um fenômeno muito sutil que talvez pudesse explicar esse ímpeto. Todo mandatário, ele dizia, no dia seguinte em que é eleito, desperta como se tivesse perdido todos os seus votos; e passa a necessitar de todo o mandato para reconquistá-los. Esse fenômeno da perda de votos, quando se assume a posição de governante, e não mais de proponente, não vejo ainda muito estudado, e a dinâmica bem assinalada por Dr. Ives em diferentes regimes bem poderia ser aprofundada.  

 

Comentários finais


As abundantes citações e acolhimentos de pensadores ao longo de sua obra, estendendo o pensamento do leitor a vastas pradarias do conhecimento, dão nota de alta cultura de Dr. Ives. Ele faz do leitor um conviva de sua amizade para partilhar suas excelentes leituras, como Cícero dizia: “se temos uma biblioteca e um jardim, temos tudo”. O livro parece indispensável para colher e compreender o espírito e as impressões daqueles que vivem de pretender apropriar-se do Estado, e que simplificam o mundo desde uma perspectiva utilitária do autointeresse.  O leitor por vezes se sente desconfiado, ao indagar como Dr. Ives poderia discorrer tão bem sobre o poder, se não foi digerido pelas entranhas de Leviatã. Se bem não conheço tantos juristas, é o único que eu conheço leu a contento Eutífron, Críton e Fédon.  


Ao final do livro, ele adverte contra a realização de plebiscitos ou referendos que possam reconduzir um governante eleito a maior número de mandatos do que o previsto, pela vantagem de manipulação do povo pelo Poder Executivo, ao realizar uma consulta dessa natureza. Ele presta também o esclarecimento de sua tese sobre o art. 142 da Constituição Federal, que seria semelhante com o art. 239 de Honduras, país onde similares consultas deram causa a grande confusão política, com a tentativa de recondução de Zelaya: “É inconcebível que, no Brasil, um presidente possa declarar que “não cumprirá decisões” do STF, por considerar-se acima de qualquer outro poder. Apenas o Legislativo, quando houver invasão de sua competência, pode anular decisões do Pretório Excelso (art. 49, XI). No Brasil, só mesmo na Constituição de 1937, escrita pelo gênio de Francisco Campos – de quem se dizia que “quando asluzes de sua inteligência acendiam, geravam curto-circuito em todos os fusíveis da democracia” –, o presidente da República tinha o direito de não acatar decisões da Suprema Corte.” (op. cit., p. 274).  A culpa de incluir um poder popular em texto constitucional de certos países latinoamericanos, Dr. Ives afirma, seria do modelo espanhol adotado por nossas repúblicas irmãs, um modelo socialista. 


Considero um livro valioso pela maneira sutil com que ele diversas vezes nos faz compreender que o poder, por mais se diga portador dos mais nobres intuitos, deve ser limitado;  e pela maneira como sugere não seria prudente apenas contar com as instituições ou com a estrutura instalada no poder do Estado para fazê-lo. O livro de Dr. Ives não deixa de dissertar implicitamente sobre os achados de Lord Acton, de que o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente; ou do dito que os maçons atribuíram a Eça de Queiroz (confesso não li toda a obra dele), de que os políticos são como fraldas, precisam ser constantemente trocados. Mas penso que o autor dá passos adicionais, ao sugerir, por meio de imperativos categóricos sobre a natureza humana, tecendo considerações sobre a lógica do poder e a dinâmica do Estado, que as respostas para limitação do poder não estariam no sistema legal, nem nas instituições de controle, sob o alcance da estrutura de poder do Estado. 


Por este ponto Dr. Ives adentra um território ambíguo. Talvez as citações que reputaram a ele proximidade com atores de ideal autoritário, os quais contraditam as convicções que ele afirma em toda sua obra, a preferência pela democracia, o tenham colocado sob suspeita por aqueles que não leram sua obra.  Poderia o jurista estar conduzindo o leitor a duvidar que se pudesse esperar qualquer governo justo, e a ter certeza que não deve esperar nenhum mérito dos governantes nos Três Poderes, além da busca desenfreada dos detentores do poder por mais poder; para ao final depurar um elogio tópico insuficiente à democracia brasileira, ao alegar que o poder judiciário não deve jamais ser contestado, provocando intencionalmente uma recusa a essa conclusão? 


Eu tenderia a afastar teses conspiracionistas de que Dr. Ives teria atuado com vistas a agradar tanto a militares quanto aos parlamentares, na década de 1980, porque as convicções dele de que devemos buscar o esclarecimento e melhor formação dos governantes permanecem a despeito de seu pessimismo.  No autor eu sinto entretanto um senso de responsabilidade: afinal, ele formou algumas gerações dos militares que hoje se encontram no poder. Além disso, acho muito difícil julgar a consciência e a estratégia de um jurista. Muitas vezes os juristas mudam o que pensam com maior flexibilidade que os políticos, colhendo os honestos benefícios de haver conduzido as personalidades autoritárias, que se escondem sob conceitos rígidos, à desgraça completa. Meu instinto, portanto, é que a Dr. Ives se deve respeito, e com ele se deve aprender.


Isso é possível? Parece-me que não apenas possível, como natural, que a leitura deste livro desde uma perspectiva autoritária force aos piores resultados possíveis.  Pois quem busca pretextos para defender um regime baseado em fundamentos “maquiavélicos” tomará do livro apenas os trechos em que se lamenta a triste realidade histórica, incapaz de apreender a sutileza da força moral de seus argumentos. A leitura do livro comprova que ele ressalta, em diversas ocasiões, que as opções de regimes ditatoriais e autocráticos são um retrocesso e que as democracias são preferíveis. A verdade é que hoje muito se deduz de sua obra tomando outras convicções que lhe são alheias, e não o que ali está contido. Não me espanta: poucas pessoas hoje em dia são capazes de ler um livro. Encontrar o pensamento do autor será sempre uma atividade que depende da própria perspectiva desde onde se olha, de onde o nosso foco não se desvia e o olhar repousa. 


Mas ainda que Dr. Ives afirmasse não restaria outra opção para restabelecer, em hipótese, um equilíbrio entre Poderes senão por meio de aceno em desfile extrajudicial – o que ele não faz em sua obra, e de sua obra não seria possível deduzir isso…  Por tudo que me pareceu dar visão diversa sobre a realidade positiva, dos valores concretos que a lei a justiça interpõem no exercício do poder, e por considerar que a mesma natureza humana não pode explicar nem determinar tão diferentes condutas que observamos entre os ex-governantes,… Ainda sou da opinião de que o ambiente parlamentar e oficial ainda é o melhor espaço para se conduzir esse tipo de iniciativa, não apenas pelas imunidades que estão ali contidas – mas também pelo bom senso prático. As faturas dos parlamentares podem ser analisadas com melhor precisão pelos anciãos do Tribunal de Contas. 


A despeito disto tudo. O objeto político de Dr. Ives Gandra o colocaria ao lado de Maquiavel, Hobbes, dentre outros autores tidos como realistas? Acho difícil classificar numa mesma caixa reflexões tão complexas e distintas. Se lermos a peça de teatro Mandrágora, de Maquiavel, constataremos que ele satiriza o político poderoso que se move pelo interesse próprio, e como teatrólogo. Maquiavel retém um senso moral muito claro de que um indivíduo que adotasse suas recomendações sugeridas na obra “O Príncipe” seria alguém detestável, alvo da chacota da sociedade, com destino certamente infeliz. É preciso olhar a obra e vida completa de um autor, portanto, dentro de um contexto no qual o pensador quer evidenciar certas ideias – e nem sempre as ideias destacadas e percorridas em um livro, ou a realidade que se descreve cruamente, configuram os ideais e os objetivos de um autor em publicá-las. 


* Ana Paula Arendt é cientista política, poeta e diplomata. 

 

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