O Livro das Limitações

Partilho com os amigos e leitores os trechos iniciais do meu próximo livro, "O Livro das Limitações". Este excerto contém a Evocação, Parabasis, e a Parte I, sobre o Primeiro Brasil, onde se encontram os cantos referentes a Pindorama, Ofiússa, (depois Lusitânia) e África. No PDF vocês podem conferir os prelúdios. Boa leitura!
O Livro das Limitações
Ana Paula Arendt
Evocação
I
Venha o pacto de reconciliação e a boa notícia:
recondução na esperança e o fim dos inimigos*…
Antítipo** de um banquete com muitas delícias
a História em que brilham os nossos amigos…
Amigos, todos aqueles que nos anunciaram
palavras de bom cheiro que a paisagem sonora tinha…
Venham compor comigo as baladas que recusaram
os infelizes, os arrogantes e a gente mesquinha…
Em linha, em planisfério, esfera ou tesserato***
sejam todos! Venham logo! Estejam prontos!
A curar nossos lamentos, murmúrios e prantos
pelos tristes acontecimentos de tantos fatos.
E se impediram nosso canto com muitas demandas
recolhemos dessa labuta o que Deus nos manda.
*Salmo 77 53, I
** Algo que prefigura o mesmo valor de outra coisa.
*** Cubo 4D que permite contemplar a quarta dimensão do mundo.
Parabasis
Que terra é esta?
II
Diz-se a terra aonde foram os degredados
pela pobreza, crime, desesperança…
Prisão que os poderosos e altos magistrados
decretavam aos desajustados sem fiança.
Brasil, pela cor avermelhada de sua madeira,
de extração para as casas antigas, europeias.
Pindorama, para os índios, repouso de palmeiras
de partilhar suas posses e também suas veias.
Teia em que se reuniram supostamente os fracos
expulsos pelos valentões de distantes colinas.
Mas a incredulidade, fazer da vida má sina
é o verdadeiro cárcere do espírito que destaco.
Reconciliaram-se aqui todas as boas consciências:
fugitivos de um destino sem propósito e essência.
O que é um País?
III
Um País é destino que causa muita alegria,
de ouvir seu nome nosso ouvido se desloca
para os tempos em que aprendemos havia
liberdade especial que o coração nos toca.
Um País é feito de partilhar mesma promessa
um sonho mágico de canção ainda não dita.
E o nosso sonho, reclamando das cenas avessas,
é que o passado seja um amor que nos visita.
E se te dita alguém que o nosso está perdido,
Se a lástima é tão grande que a memória desfaça
em distância, tragédia, ironia e fumaça…
Saiba que encontrei algo indestrutível*.
O que no teu peito tanto nos fere e incomoda
é o sentimento vivo que te faz girar esta roda**.
*Carlos Drummond de Andrade, “ao amor, o poema que não pode ser destruído”. “O amor é a memória que o tempo não mata”. Vinicius de Moraes, Jardim noturno: poemas inéditos.
** Dharmachakra, a roda que representa o caminho para a iluminação.
Como conhecer um País
IV
Me disseram que se conhece um país por suas guerras*,
que para contar de onde viemos e aonde vamos
precisamos repetir o que ouvimos de quem enterra
os mortos por defender as causas que nos damos.
Já outros disseram que se conhece um país pelos povos**,
por trajetos que fizeram para deixar de ser forasteiros***.
Estes dizem pelas obras dos homens**** e dos poetas novos*****
que são monumentos******, de todos os séculos passageiros*******.
Inteiro dizem um país feito de guardar suas riquezas,
pelas paisagens******** que ornam os catálogos de pintores.
Pelos defeitos e perdição de eternos e intensos amores********,
paixões políticas*********** e expedições************, geografia da grandeza*************.
Os nossos amigos que despertam da invocação ficam mudos:
para que eu lhes diga o que eu quero: e queremos tudo.
* “A guerra é a continuação da política por outros meios”, Carl Clausewitz.“Não há história de nenhum povo em que a guerra tenha deixado de ser o elemento crucial para manutenção ou perda de poder. (…) Para aqueles que o exercem, na maioria das vezes a guerra é o grande instrumento de afirmação, sendo tanto maior o desejo de deflagrá-las quanto mais poderoso for o governante”. Ives Gandra Martins, Uma breve teoria do poder, p. 191-197. Michael C. Desch, “War and Strong States, Peace and Weak States?” International Organization, Vol. 50, No. 2 (Spring 1996), pp. 237–268.
** Darcy Ribeiro, O povo brasileiro. Companhia das Letras.
*** "Um homem sem um país é um exilado no mundo; um homem sem Deus é um órfão na eternidade." Henry van Dyke, citado em "The Missionary review of the world" - vol. 26, página 528, de Royal Gould Wilder, James Manning Sherwood - Missionary Review Publishing Co., 1903
**** Plutarco. “O mundo do homem é melhor capturado através da vida dos homens que criaram a história”.
***** Victor Hugo, “O perigo da ignorância”, Discurso à Assembleia Geral de 11 de novembro de 1848; Monteiro Lobato, “Um país se faz com homens e livros” in: "América. Obras completas de Monteiro Lobato, 1ª Série, Literatura infantil, Vol. 9, 6ª edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 1955.
****** ”Cada nação tem idiossincrasias que a diferenciam das outras e fazem com que se sinta isolada delas, atraída por elas ou repelida por elas. (…) O verdadeiro caráter de uma nação, por outro lado, raramente é reconhecido ou compreendido, nem pelos de fora ou pela própria nação. As nações, como os seres humanos, não têm consciência do funcionamento de sua natureza interior e, no final, ficamos surpresos, até estupefatos, com o que emerge. Não pretendo conhecer esses segredos, nem teria coragem de defini-los, mesmo que soubesse." Wolfgang von Goethe, Literatura mundial.In: Essential Goethe, Princeton University Press, 2016, p. 908
******* Túmulo dos Patriarcas e Matriarcas, Hebrom. Panteões da Pátria. Etc.
******** Yi-Fu Tuan, Topophilia. Columbia University Press, 1990. “Patriotism is an emotion rarely tied to any specific a locality; it is evoked by abstract categories of pride and power, and by certain symbols, such as the flag”.
********* Ivan V. Lalić, Mesta koja volime (Lugares que amamos).
*********** Joaquim Nabuco, Um estadista do Império. Afonso Arinos de Melo Franco, O estadista da República.
************ Carlos Alberto Nunes, Os brasileidas. Editora 34.
************* “O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence”. Milton Santos, “O dinheiro e o território”, GEOgraphia – Ano. 1 – No 1 – 1999. O mapa na alma
V
Não se pode conhecer algo que se odeia e despreza:
pois escárnio e insulto cegam, e o País, triste, se esconde.
é preciso amar para conhecer o que nos descreva*,
e encontrar quando, como, porquê, por quem e onde.
Eu canto o País feito de povos, pazes, Santos, mapas…
Dele o que me habita e nos faz entender claramente.
E é muito interessante, abrir com olhos frescos os mapas
dos livros que eu já havia lido tantas vezes, e de repente…
Consente o que nos justifica e doura o pensamento,
o que não se esquece depois de há muito ser lido.
Por que não passam algumas coisas que temos sido?
E por que certas cenas suscitam o contentamento?
Era a falta de viver o que desenhou cada momento:
ter do ato meu motivo, dar ao verbo cumprimento.
* São Boaventura ensina que para entender um objeto de nosso estudo, é preciso ter afeto por ele.

Parte I – O primeiro Brasil em várias partes
VI
A primeira Capela Sistina
No ventre de Cerro Azul, as paredes iluminadas*
vão sendo por artistas desenhadas: grande obra!
Mulheres e homens celebraram ali a jornada
de andarilhos desde Bering, fazendo manobras.
De sobra à caminhada muito longa com rebanhos,
desde a ponte de gelo que Tupã fez de acesso,
as tribos cativadas pelo que é novo e estranho
conquistaram novas plagas e fizeram um congresso.
De recesso, na Serra da Capivara instruíram as crianças:
todas sentadas ao redor dos experientes e maestros
que vão desenhando nas paredes como caçam os destros,
o amor no beijo, como nascem os filhos, e na festa se dança…
Essas lembranças não apagaram o tempo, nem a floresta:
pois a carta foi escrita com tinta de tudo que nos resta.
* No parque arqueológico de Cerro Azul, localizado em Guaviare, na Colômbia, foi descoberta a “Capela Sistina das pinturas rupestres” pelo arqueólogo e antropólogo colombiano Carlos Castaño, em 1986. Fica na região de Serranía de La Lindosa, dentro do Cerro Azul e teve a sua pintura rupestre datada entre 12.600 e 11.800 anos a.C. O sítio arqueológico brasileiro da Caverna da Pedra Pintada, em Monte Alegre, no Pará, é mais antigo, datado de 13 mil anos a.C. Já Parque Nacional Serra da Capivara se localiza no Estado do Piauí, ao Sudeste do Estado e abrange cerca de 400 sítios arqueológicos onde foram encontrados artefatos líticos, esqueletos humanos e pinturas rupestres que datam de 15 a 22 mil anos a.C. Por enquanto, a primeira Capela Sistina da humanidade está guardada no Brasil.





Imagens: Parque Nacional Serra da Capivara.
VII
Um modo de viver muito diferente
Enquanto em Roma se erguem os exércitos
para dominar dilemas e impor língua, cultura
cada tribo na América a si mesma procura,
longe dos tribunais controlando pleitos.
Já feito o muito amor, a vida é pastoril:
barco, pintura no corpo, banhos, plantar a terra...
Manter vigilância rumo à terra que será o Brasil,
treinar arco e flecha, caçar bicho, evitar a guerra.
Erram* as novas famílias no espaço, formando tribos;
algumas adentram o imenso e longo continente.
Já outras escolhem viver seguindo mais em frente,
ao longo da costa vão pescando e buscando cibos**.
Chivo expiatório*** ou julgamento, nesta terra, ainda não existe:
basta mudar de lugar, deixar pra trás o que te deixou triste.
* “Errar” também significa andar sem uma direção certa, viver como nômade.
** Cibos: pequenas porções de comida.
*** Chivo expiatório, ou bode expiatório. Ver Girard, René, Le bouc émissaire.
VIII
Os que passando Bering ficaram no meio do caminho
inventaram impérios e hierarquias de sociedade.
Praticaram holocaustos com crianças e velhinhos:
a morte era algo solene na cultura daquelas cidades*.
Os povos que prosseguiram caminhando até o fim
inventaram sossego na floresta, formaram tribos.
Foram encontrando histórias para você e para mim
bastava viver na oca, fazer folclore sem recibos.
Letivo: passavam-se alguns anos e ascendiam caciques
dizendo tudo o que pode ou não se pode fazer.
Logo iam até o pajé, os injustiçados, perguntar por quê,
em busca do que resolva e não nos complique.
Mas raramente o mais velho discorda de cacique muito ouvido.
Assim não restava outra sorte: senão partir embora, escondido.
* René Girard. Ángel Barahona. Notas sobre holocaustos de pessoas vulneráveis pelo Império Asteca.

IX
Vários povos, várias línguas
Desde a Ásia vinham, esses índios recém-brasileiros
evitaram o risco, disputa, competição e morte.
Caminhavam buscando os espaços alvissareiros,
onde viver não fosse um sinônimo de má sorte.
Mais fortes prosseguiam e, disso, ainda as guerras;
pois às vezes entravam em disputas os ameríndios.
Mas também faziam a paz, pois todo mundo erra:
casavam filhas dos caciques e assim foram indo.
Vindos vinte mil anos, de buscar na selva novas vias:
surgiram disto mais de mil línguas nas tribos diferentes*.
Diziam umas palavras menos, outras mais frequentes,
cada qual falando em seu canto muitos e muitos dias**.
Indiazinha, tudo vivendo, pediu a Tupã uma solução incrível:
que todos falassem a mesma língua, e disseram-lhe: impossível...
* “A única estimativa de que dispomos sobre a diversidade das línguas indígenas existentes no Brasil há 500 anos, antes do início da colonização desta parte da América do Sul pelos europeus, é a que foi apresentada, em 1992, na Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (Rodrigues, 1993a, 1993b). Segundo essa estimativa, teria sido de cerca de 1,2 mil o número de diferentes línguas faladas em nosso atual território pelos povos indígenas. O ponto de partida para essa estimativa foi uma relação de 76 povos indígenas que se encontravam numa estreita faixa paralela à costa leste, desde o rio São Francisco, ao norte, até o Rio de Janeiro, ao sul, feita pelo padre jesuíta Fernão Cardim no século XVI (Cardim, 1978 [manuscrito de 1584]). Nessa lista, Cardim referiu-se explicitamente à identidade ou à diferença das línguas faladas por esses povos, deixando claro que, ao todo, se tratava de 65 línguas distintas entre si e distintas da língua dos índios da costa, que eram os tupinambás (que incluem os tupiniquins, caetés, potiguaras, tamoios etc.), com os quais os portugueses mantinham contacto. Como alguns nomes na lista estão claramente na língua dos tupinambás – a mesma que hoje também é chamada de tupi antigo e que no século XVII foi denominada língua brasílica – e os demais estão grafados à maneira como os jesuítas escreviam essa língua, pode-se supor que as fontes de informação tenham sido os índios tupinambás e que aquela enumeração representasse o conhecimento destes sobre seus vizinhos mais imediatos.” (Aryon Dall'Igna Rodrigues, “Sobre as línguas indígenas e sua pesquisa no Brasil”. In: Cienc. Cult. vol.57 no.2 São Paulo Apr./June 2005). “Dentre as cerca de 160 línguas indígenas que existem hoje no Brasil, umas são mais semelhantes entre si do que outras, revelando origens comuns e processos de diversificação ocorridos ao longo do tempo. Os especialistas no conhecimento das línguas (lingüistas) expressam as semelhanças e as diferenças entre elas através da idéia de troncos e famílias lingüísticas. Quando se fala em tronco, têm-se em mente línguas cuja origem comum está situada há milhares de anos, as semelhanças entre elas sendo muito sutis. Entre línguas de uma mesma família, as semelhanças são maiores, resultado de separações ocorridas há menos tempo. No que diz respeito às línguas indígenas no Brasil, por sua vez, há dois grandes troncos - Tupi e Macro-Jê - e 19 famílias lingüísticas que não apresentam graus de semelhanças suficientes para que possam ser agrupadas em troncos. Há, também, famílias de apenas uma língua, às vezes denominadas “línguas isoladas”, por não se revelarem parecidas com nenhuma outra língua conhecida. É importante lembrar que poucas línguas indígenas no Brasil foram estudadas em profundidade. Portanto, o conhecimento sobre elas está permanentemente em revisão.”. Fonte: website Povos Indígenas do Brasil. Texto adaptado de Aryon Dall´Igna Rodrigues – Línguas brasileiras: para o conhecimento das línguas indígenas. Edições Loyola, São Paulo, 1986.
** “A Torre de Babel. Naquele tempo toda a humanidade falava uma só língua. Deslocando-se e espalhando-se em direção ao oriente, os homens descobriram uma planície na terra de Sinar e depressa a povoaram. E começaram a falar em construir uma grande cidade, para o que fizeram tijolos de terra bem cozida, para servir de pedra de construção e usaram alcatrão* em vez de argamassa. Depois eles disseram: “Vamos construir uma cidade com uma torre altíssima, que chegue até aos céus; dessa forma, o nosso nome será honrado por todos e jamais seremos dispersos pela face da Terra!” O Senhor desceu para ver a cidade e a torre que estavam a levantar. “Vejamos se isto é o que eles já são capazes de fazer; sendo um só povo, com uma só língua, não haverá limites para tudo o que ousarem fazer. Vamos descer e fazer com que a língua deles comece a diferenciar-se, de forma que uns não entendam os outros.” E foi dessa forma que o Senhor os espalhou sobre toda a face da Terra, tendo cessado a construção daquela cidade. Por isso, ficou a chamar-se Babel, porque foi ali que o Senhor confundiu a língua dos homens e espalhou-os por toda a Terra. (Gênesis 11, 1-9) *Alcatrão é uma substância betuminosa e escura, feita de resinas e de ossos.
X
Pindorama
Terra de quem descobriu o mundo não tem fim*:
sempre há mais espaço inexplorado a ser percorrido**.
As lendas que os pajés contaram para você e para mim
do céu tombando sobre a terra***, fazendo tudo ressurgido…
Inventam o que não havia antes, guardam segredos****:
a criação é o ato de fazer e refazer o universo.
Nada permaneceu estagnado no tempo, e o medo
precisa de uma explicação que produza o seu inverso.
Os tupinambás mais hábeis caçam animais para a tribo.
Mas os caciques, corajosos, têm de ser capazes de matar:
não é uma utopia, na floresta há os animais e os inimigos
capazes de abate humano com a ibirapema***** a baixar.
No ritual de Justiça tupi-guarani, o carrasco proclama:
“mataste meu povo e morrerás”, e a vítima avisa aos que ama.
* Ailton Krenak, Ideias para adiar o fim do mundo.
** “Bem sabe que há infinitos de todos os tamanhos”. José Barroso Filho, Ministro do Superior Tribunal Militar e Conselheiro do Conselho Nacional de Educação.
*** Sobre a cosmogonia dos Ianomâmis: o céu tomba sobre a terra várias vezes e tem a floresta nas costas. Cf. Davi Kopenawa, Queda do Céu, Companhia das Letras, 2010. O autor é escritor, xamã e líder político dos Ianomâmis.
**** “Existe apenas um planeta, mas este planeta abre-se numa pluralidade de mundos”, sobre as cosmogonias indígenas, por Elizabeth Povinelli, antropóloga. Ver também Claude Lévi-Strauss, A Oleira Ciumenta (São Paulo: Editora Brasiliense, 1985), sobre os mitos dos Waiwai, Kashinawá e Guarayo.
***** Um tacape/porrete de madeira com uma esfera na ponta e plumas na extremidade inferior, com que o cacique golpeava a nuca de um prisioneiro, em um ritual no qual ele era amarrado com uma corda chamada muçurana, fazendo jorrar o seu cérebro. Posteriormente o corpo do prisioneiro era esquartejado e devorado pelos membros da tribo em um ritual antropofágico. Hans Staden, Duas viagens ao Brasil: primeiros registros sobre o Brasil. L&PM, 2010, p. 160-168.



XI
Mas da areia se ergue o mar que estende o oceano
e ressoa no ouvido a poesia que toda concha guarda
Existe algo que não sabem os caciques de danos…
Lugar onde não alcança o tiro de espingardas.
Outras lendas também deram vida aos povos, alternas:
O espírito guerreiro d’antes do mundo e dos homens vis,
Kamukuaká, foi preso por Kãma, o Sol, em uma caverna,
os waurás têm canções e ritos para formar suas ordens sutis.
Os parecis fazem surgir o mundo por uma ponte de pedra*;
Os kûra-bakairi, o Salto Sawapâ, na confluência entre dois rios**;
O corpo e a alma precisam de uma natureza que os alberga,
distinto o índio de um filósofo que jamais pisa o mesmo rio***.
Não há só waraus, tupis, guaranis, parecis, yanomamis;
Também ticunas, caingangues, macuxi, terenas,
guajajaras, xavantes, potiguaras, pataxós, kaxararis,
ingaíbos, todos os indígenas fazem parte deste poema.
* Conforme a antropóloga da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Maria Fátima Roberto Machado, vários povos indígenas de Mato Grosso têm sua origem ligada a cavernas, pedras e pontes. O resultado da situação por vezes é levado à Justiça Federal: já se embargou a construção de hidrelétrica particular "bem no salto sagrado". Os descendentes de waimare e kaxiniti reivindicam a inclusão da Ponte de Pedra, que fica entre Nova Maringá e Campo Novo e fizeram um abaixo-assinado recentemente.
** O presidente da Federação dos Povos Indígenas de Mato Grosso, Estêvão Taukane, também afirma que há demarcações pela Funai que desconsideram os locais sagrados. É o caso de seu próprio povo, os kûra-bakairi, que perdeu, na demarcação de seu território, o Salto Sawapâ, na confluência entre os rios Verde e Paranatinga.
*** Heráclito (500 a.C. - 450 a. C.): “Não se pode percorrer duas vezes o mesmo rio”.


Ofiússa
XII
Em aldeias os estrímnios, cidadãos do extremo ocidente
tinham lendas de serpes, cobras aladas que renovam a pele*.
Também se dizia na península ibérica, agora cristã, temente
que Moisés tinha uma – ver serpente é coisa sã, não reles.
A verdade é que, onde há crianças, onde nasceria Portugal
existem muitas serpentes, e para viver onde elas habitam
as tribos tiveram de conviver com o que nos faz mal,
temendo as serpentes, perigosas quando se irritam.
E ritam muito mansos, de boa índole e caseiros
os estrímnios na beira do fim que acolhe o mundo.
Pois não veem que algo criado por Deus, no fundo
possa ser sem propósito, ou extirpado por inteiro.
Vieram os gregos de visita, e também os romanos;
e foram surgindo os povos lusos, inventores dos anos.
* Avieno, Ora maritima. Século IV d.C.

XIII
Era um lugar do outro lado do oceano Atlântico,
final da Europa, encerramento do caminho
que percorriam os viajantes mais românticos
em busca de encontrar amores e fazer ninho…
Gente ali ouviu a prece da jovem indiazinha.
Vieram tribos de muitos lados formar Portugal.
Mas eram incorporados pelo dizer de mesma linha:
as canções e poemas de um amor sem igual.
Tal vez vieram os de Grécia e Roma para inventar a Lusitânia*,
da Gália os alanos, desde os Bálcãs, criadores de cavalos;
os vândalos e os galegos, visigodos, suevos preclaros;
os judeus e os muçulmanos que só a Alá fazem vênia…
Todos tinham de saber cantar e contar na boa língua lusa.
Às vezes, melhorada: mas onde o mundo termina, outra não se usa.
* Políbio (Megalópolis, c. 203 a.C. – 120 a.C.). Histórias, Lusitânia, livro 34. Disponível na Biblioteca de www.constitution.org.
XIV
O pacto secreto dos cancioneiros do fim do mundo
A verdade por vezes aparece, e vou confessar muito ligeiro.
É que os poetas dali habitantes queriam cantar eternamente.
Mas como as suas canções sobreviveriam se a dama e o cavalheiro
trocassem a nossa língua por qualquer outra diferente?
Os poetas que ali nasceram fizeram um pacto secreto.
Só trabalham e compõem se falarmos uma mesma língua;
e os seguintes, que cantaram as coisas lindas do peito reto
só terão louvores se não deixarem nossas palavras à míngua.
Vinga então que é um comércio, então, a poesia?
É por causa de contrato de cantores, ter uma língua só?
Não é tão secreto, que o homem surja e volte ao pó
mas o sentimento verdadeiro permaneça com valia…
De se fazer habitante de onde acaba o limite do mundo
haverá um canto que é sentimento mais profundo.

XV
Moravam por ali os Célticos, Opidanos, Túrdulos velhos, Lusitanos;
Os Tartéssios, Turdetanos, Táporos, Elbócoros, Lancienses, Lancienses;
Pésuros, Calvros, Vetões, Igeditanos, Elbócoros, Transcudanos;
Cunetes, Túrdulos, Calontienses, Mirobrigenses, Cerenses (não Cearenses…!)
Havia um pouco de brácaros e seurbos, leunos;
Algo dos calecos, ebócosos banienses e zelas.
Eram as gentes que moravam abaixo dos grovos e quarquernos,
dos caladunos, tamaganos, límicos, equesos e celernos,
dos interâmicos, bíbalos, lêmavos, superácios e gigurros,
dos arrótrebas, neros, cóporos, cilenos e grovos,
dos arronos, varrinamarinos, cibarcos, egos, helenos e ádovos,
dos luges, bedos, prestamarcos, supertamaricos e seurros.
Sim, urros: viviam debaixo dos albiões, estes os galaicos e astures.
Os lusitanos eram os vizinhos orientais dos váceos e carpetanos,
um povo amigo dos oretanos, púnicos e bastetanos.
Os que moravam acima dos cilbicenos, de tudo alhures*.
Será que tinham naquele tempo os nomes e sobrenomes de pessoa única?
Lusitânia era a terra entre Roma e Cartago, durante as guerras púnicas*.
* Antes das conquistas fenícias, em 300 a.C.
** No tempo de Augusto 69 d.C., a Lusitânia terra vizinha da Bética e Tarraconenses. Já para Diocleciano 298 d.C., a Lusitânia vizinha da Galécia, da Bética e dos Cartaginenses.

XVI
Foi da Lusitânia que surgiu uma importante lei de governo:
Quando Servius Sulpicius Galba cometeu uma alta traição.
Muito pior do que as traições de todo tempo moderno,
na mais longa guerra do Império Romano até então*.
Os fortes lusitanos, fatigados de batalhar em tanta violência
ofertaram a rendição – e os romanos, civilizados, aceitaram.
Já rendidos, ao assinar tratado de paz, em consequência
o governador Galba e a sua legião aos lusos assassinaram!
Arcaram com a Lex Calpurnia**, em Roma levado a última instância
o governador: seu ato maldito acabou com rendição dos governados.
Foi quando Calpúrnio viu Galba erguer na Assembleia a relevância
da pura retórica, com seus filhos em um discurso emocionado.
Perdoado pela Assembleia, mas Calpúrnio, o Legislador romano
Mas disso instituído um tribunal permanente para punir abusos de tiranos.
* Guerras Lusitanas, Pyrinos Polemos (“a terrível guerra”, em grego), foram guerras de resistência travadas entre as tribos lusitanas e as legiões romanas de 155 a 139 d. C. Fonte: Estrabão (63/64 a.c - 24 d.C.), Geografia. Disponível na Biblioteca de www.constitution.org.
** Lex Calpurnia (de repetundis), projeto de lei patrocinado por Lucius Calpurnius Piso (Lúcio Calpúrnio Pisão Frúgio), tribuno da plebe, em 149 a.C., aprovado por plebiscito, que visava reparar vítimas de extorsão de governadores e oficiais romanos (Cicero, apud Lintott, "The Procedure under the Leges Calpurnia and Iunia de Repetundis and the Actio per Sponsionem”, p. 209).
XVII
A lei Calpúrnia virou punhal entre facções políticas,
fez uma família acusar a outra, com passar dos anos.
Mas assim venceram o Império, os pobres lusitanos,
motivo da existência daquele tribunal de justiça enfática.
Pode-se dizer que os lusitanos rendidos foram como Cristo
e a mesma ambição que fez matar um inimigo que se rende
desdobrou e fez um ensinamento a se retirar disto:
é o que degenera a glória que todo Império vende.
Pende que o orgulho, a ambição e a arrogância não enxergam,
a Justiça não se encontra em demonstrar poder e conhecimento;
mas na beleza e bondade que os homens com a lei entregam,
numa justa medida das coisas que faz o contentamento.
Sobreviveu em toda parte, a rica herança dos romanos, contudo.
Os povos que eles diziam bárbaros às boas ideias não fizeram escudo.
(…segue a História de Portugal e da África, antes da convergência dos caminhos no Brasil).
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