O que é a felicidade?
No Charity Bazaar das Embaixadas e trajes típicos reunidos no International Women's Club, em Belgrado, 1/12/2024.
O que é a felicidade?
Ana Paula Arendt*
A felicidade é um tema que moveu muitos mundos e pessoas. Logicamente que havendo tantas diferenças entre as pessoas e modos de vida possíveis, eu não pretenderia chegar a uma resposta definitiva sobre o que seja a felicidade. No entanto, me surpreende a dificuldade em abordar o tema: a delicadeza de tudo que se encontra ao redor da nossa felicidade, dos eventos que, por razão ou outra, deveriam nos proporcionar ser felizes.
Na carreira diplomática, a felicidade é traiçoeira: as novas paisagens nos elevam o espírito e nos fazem sonhar. Mas a mudança constante nos faz perder a memória e nos impede de aprofundar raízes. Também o foco centrado no trabalho, na funcionalidade de si mesmo, na incessante bola de roda que faz girar o que queremos, na corrida e competitividade, nos fazem escravos do sucessivo. A família nos esquece com a distância, ou ao menos se torna menos frequente. Do ponto de vista material, tudo se torna escasso; os filhos se espalham pelo mundo e os netos dificilmente falarão português.
Azeredo da Silveira repetia que o importante é ser feliz. Num de seus discursos a alunos de diplomacia, certa vez afirmou que, no exterior, na distância da família e dos amigos, o único recurso que por vezes sobra é o amor à Pátria. E temos então o problema: o que fazer quando falha esse amor, ao desviar o rosto de olhar a Pátria, das barbaridades em notícias.
Assim, logo se vê uns tantos diplomatas que, amando a Pátria, tentaram arcar com os custos dos conflitos, ou dar cabo deles, escorregando da sacada, ou lendo Shakespeare demasiadamente. Ocorre que ser feliz muitas vezes é algo urgente. Alguns ligam uns para os outros: então muitos se salvam pelo resgate do bom senso e pela dúvida quanto à seriedade das coisas. Outros sonham e planejam, adiando a felicidade para o futuro… Aos que não tiveram tempo de sonhar, Padre Aleixo, s. j. fez tantas encomendas a Deus. No final feliz, na Catedral, todos sempre se reúnem solenemente para celebrar a passagem e dar seguimento aos afetos que ficam, e as famílias acabam se resumindo umas nas outras, nessa aproximação do convívio. Da tristeza de partidas, novos encontros, novos tecidos.
Mas a felicidade independe desses movimentos de tensões e distensões. É algo que existe a despeito das piores circunstâncias, não é uma lenda: e como encontrá-la?
Está claro, ao menos para mim, que a felicidade não se encontra em uma abordagem médica que pressuponha enfermidade. Por mais que se tenha conhecimento suficiente do funcionamento de certas substâncias, dopamina, serotonina, endorfina e ocitocina, e da possibilidade de fazer retornar o bem-estar por meio do uso artificial desses recursos, o efeito químico não dá conta de tudo. O mundo tem enfermidades: regiões em guerra, crianças sendo alvejadas por metralhadoras e soterradas em prédios desabados, um mundo sob ameaça de um colapso nuclear, ou o próprio País dilacerado com ódio e vício. São elementos que acenam drenando todo o bom efeito que se possa produzir com um coquetel de medicamentos, ainda que bem prescritos pelo melhor especialista. “Pois quanto maior a sabedoria, maior o sofrimento; quanto maior o conhecimento, maior a tristeza”, dizia o Rei Salomão (Eclesiastes 1, 18).
A produção natural dessas substâncias, com o aconchego aos filhos, as alegrias em uma bela noitada com música e amigos, ou em uma manhã de domingo ornada de boas considerações e convívio pacífico, o exercício das virtudes e sobretudo da caridade, os exercícios físicos, neste ponto, talvez produza efeitos menos dependentes e mais duradouros na realidade. Ser autor da própria vida produz dignidade. Essa dignidade aumenta de proporcionar felicidade ao outro: redobra e reforça um movimento positivo, sustentável, independente. A memória destas coisas mais simples, do riso, da abertura, da música, é também um repositório importante de eventos que fazem nutrir a alma. O afeto, carinho e amor que as relações humanas saudáveis contêm elevam o espírito acima dessas dificuldades que parecem intransponíveis.
Mas ainda que pudéssemos organizar racionalmente todas as condutas e hábitos que nos levam a um maior nível de felicidade e contentamento, não se poderia explicar por que se ama tão profundamente este, ou aquele; por que certos pais amam os filhos a ponto de sacrificar-se em uma disputa, para que não sejam partidos ao meio, e outros preferem insistir em uma suposta vitória para fazer dos filhos um domínio pessoal. Ou por que pessoas vivendo dentro das mesmas circunstâncias e em rotinas similares têm níveis tão diferentes de felicidade. Como aceitar que um colega que me fez tão feliz, vivendo em circunstâncias muito melhores que as minhas, com muito maior perfeição de conduta que a minha conduta imperfeita, com muito maior disponibilidade de parceiras, tenha um pior nível de felicidade que o meu, que não tenho parceiro algum?
A teodiceia de Leibniz foi criticada por Voltaire em tantos aspectos. Não se poderia justificar com Deus a existência do mal e do sofrimento, para ele; daí o escárnio em Cândido. E neste ponto, Agostinho recorre ao problema do pecado e do equívoco no uso do livre arbítrio como a origem do problema. Mas Isaías profetizou de um modo distinto um Deus que é responsável por tudo:
“Eu [Deus] formo a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas estas coisas.” (Isaías 45,7)
Para São Paulo Apóstolo, o sofrimento existe para que os bons se levantem: o ser humano precisa se erguer e e se desenvolver quando encontra o sofrimento, “o vale da criação das almas”, de Keats.
“Em primeiro lugar, ouço dizer que, quando se reúne a vossa assembleia, há desarmonias entre vós. (E em parte eu acredito. É necessário que entre vós haja partidos para que possam manifestar-se os que são realmente virtuosos.)” (Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios 11, 18-19).
O sofrimento individual alcança, ainda, uma necessidade de contenção do pecado:
“E, para que não me exaltasse pela excelência das revelações, foi-me dado um espinho na carne, a saber, um mensageiro de Satanás para me esbofetear, a fim de não me exaltar. Acerca do qual três vezes orei ao Senhor para que se desviasse de mim. E disse-me: A minha graça te basta, porque o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois, me gloriarei nas minhas fraquezas, para que em mim habite o poder de Cristo. Por isso sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por amor de Cristo. Porque quando estou fraco então sou forte.” (Segunda Carta de São Paulo aos Coríntios 12:7-10)
Escrevi no poema Itaoby, o lugar onde moro, que a felicidade está sobrevalorizada: mais importante que a felicidade é o entendimento. Sem entender, como ser feliz? Talvez isto pudesse se encontrar em uma frontal oposição com a lei do Rei Salomão, a princípio, de que maior o conhecimento, maior o sofrimento. Mas no poema eu me centro em uma perspectiva individual da felicidade, e não no problema de Pareto, do bem-estar geral - problema que vem da falta de entendimento, em geral. Nem por isso acho a felicidade individual menos importante: da felicidade de uma pessoa, calcada no profundo entendimento de si mesmo e das coisas ao nosso redor, se podem estender infinitos efeitos. O amor que se tem por alguém, sendo tão intenso, pode ser fonte doadora, água que mana incessante para encerrar o ânimo de controvérsias infindáveis: o que alimenta guerras.
Para mim, os detalhes do percurso e da trajetória, do caminho e do lugar onde encontro sossego, são uma imensa fonte de prazer e felicidade. A permanência no paraíso, estar nua, na presença divina, lugar em que nada me falta: o paraíso é dar fim à solidão do outro. Reconhecer detalhes no plano divino, por meio do entendimento, fornece as peças que faltavam para ser feliz. O entendimento, sinônimo de todo tratado, cerne de cada compromisso ao longo dos dias.
No paraíso havia apenas duas pessoas, e o plano original era que também habitassem o paraíso os filhos de Adão e Eva - malogrados Caim e Abel, Deus se concentra então na descendência de Seth, o filho que assimila sua própria condição e se volta para cumprir os desígnios de Deus. O problema do pecado original deve ser superado para proporcionar a felicidade do ser humano - o que vai ser positivado posteriormente nos mandamentos de respeito ao próximo, e gravados no Evangelho. Seth é feliz, e isso vai além do sentimento. É feliz porque faz escolhas felizes, porque tem entendimento do que lhe trará verdadeira felicidade.
A felicidade estaria, então, em evitar o pecado, o erro? Após Cristo, a felicidade vai muito além das vicissitudes e do sofrimento, pois está em cumprir com o desígnio de amar, no progresso de uma caminhada rumo à identificação completa com Deus. Deus é Amor, testemunha São João, e portanto apenas se pode concluir que a felicidade verdadeira e duradoura é amar como Deus amou, com perfeição – amar primeiro, amar o inimigo, amar até o fim. Amar sem nada exigir, dar-se, inclusive todo o melhor sentimento que se tenha. O entendimento do amor proporciona a felicidade que nos falta meio à agrura e o sofrimento não importa. Uma noite mal dormida passa a ser a melhor noite de minha vida, enquanto velo e rezo por alguém que amo. A felicidade está em cooperar para a salvação da alma que precisa ser salva, em liberar a alma do próximo, do que lhe pesa.
Recomendo aos meus leitores ter consigo um excelente livrinho, o Mensis Eucharisticus, que se diz ter sido produzido pelo Padre Santoro. O próprio nome dele um privilégio: “Santo de Ouro”. Fez o livrinho áureo. É um livro de orações interessantes, porque lista os nossos problemas – com os quais todos nós podemos nos identificar ao menos em parte – não para cair em uma vala do pessimismo, ou do lamento, mas para encontrar nisso o propósito de celebração de novos atos favoráveis. O encontro de Cristo com o nosso sofrimento serve para produzir a beleza e a bondade.
Encontro também a felicidade no horizonte pneumatológico, na explicação do que está ainda por vir. Entender que as coisas ocorrem para que algo substantivo aconteça é necessário para alcançar a felicidade inafiançável. Assim, os planos de assassinatos, a violência à queima-roupa, a incoerência dos religiosos que pregam a paz e aplaudem a guerra, as traições e inconstâncias de propósito, o sofrimento que a irracionalidade e convulsão dos homens impingem a famílias, aos casais e às crianças servem para aviltar a nossa alma, para nos demonstrar o transtorno desses piores caminhos e nos trazer de volta ao que é bom e verdadeiro.
Deus tem a todas as almas trazendo-as para si - razão pela qual o nosso sofrimento, diante da injustiça, não dura para sempre. A construção de identidade de si mesmo, e também de um povo, depende desse movimento de construir distância com a injustiça.
Eis, então, algumas anotações sobre como tenho encontrado a felicidade – filhos e amigos saudáveis, amor inabalável por eles, pelos amigos. Felicidade em um lugar de transição, colhendo o melhor do que nos precede, transferindo disso o melhor a quem nos sucede. Os filósofos pecam demais, porque o pensamento desvinculado da realidade em que vivemos, longe do nosso anseio de felicidade e da sucessão da vida, não produz um entendimento real sobre o mundo, sobre si mesmo, sobre as coisas.
Felicidade: vencer a morte. Ivo Andric, Nobel de Literatura de 1961, escreveu na Ponte sobre o Drina que, para os grandes homens e mulheres existem duas mortes: a primeira, a morte física, a segunda, a morte que advém de quando o seu legado fenece. Cristo, os Santos e os Próceres venceram essas duas mortes, porque viveram o que vivemos em nós, e vivem em nossa carne, nossas entranhas. Assim também os profetas e deuses de outras religiões vivem e dão vida.
Viver no outro. Ser a pessoa mais feliz do mundo: parece uma proeza, neste mundo. Qual pai ou mãe, ao ver pela primeira vez o rosto do seu filho, da sua filha, não se torna a pessoa mais feliz do mundo? Essa imagem magnífica fica impressa na alma para sempre. Olhar para essa felicidade incomensurável que todos os seres humanos, tendo a graça de ser pai e mãe, guardam… Olhar para o rosto de alguém que se ama e que mora nas arcadas do coração, de quem se retém memória de infância, que reúne detalhes esparsos de todos os amores e que faz emergir todos os momentos mais felizes. Olhar para alguém que me faz querer ser uma pessoa melhor. Eis a minha definição de esposo. É uma felicidade que não pode ser apagada, e tanto maior se torna, tanto mais faz diminuir o sofrimento do mundo, quanto maior o entendimento.
*Ana Paula Arendt é cientista política, poeta e diplomata.
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